Eterno Retorno

“Você deve ter encontrado esse papel no meio dos seus livros. Não tive coragem de falar direto contigo antes de viajar, porque imaginar que me olharia nos olhos por tanto tempo me causou mal-estar. Conversas sempre foram um esporte pra nós, Cata, mas ultimamente você demorava demais para me responder, e o seu silêncio prolongado entre uma fala e outra só me fazia ficar mais ansioso. Chegou o momento em que nos orientamos por acordos coletivos de uso do espaço comum, e isso é uma droga. Precisamos combinar sobre tudo e explicar um para o outro quase como se fala com um bebê ou com um cachorro. Uma vez, depois duas, e três, enfim, há semanas nós temos terminado nossas conversas com aquela pergunta você está entendendo o que eu falei?, depois viramos cada um para seu lado da cama, trocamos um beijo com os lábios duros e dormimos. Você dorme primeiro toda vez e até isso me incomoda. Dorme como se estivesse tudo bem, enquanto eu me reviro entre o teto, a parede, o banheiro, um livro e a cama, que é macia ou dura demais. Com câimbra nos braços, tenho visto o dia clarear sem pregar os olhos. Existe um elefante na sala, aquela dúvida sobre o que faremos com a Maria, o apartamento financiado e com o desejo. Se você leu até aqui já pode ver que eu não saberia dizer isso pessoalmente sem ser de alguma forma passional. Entrego aos cuidados de Sábato o meu desabafo.

Tenho a estranha impressão de que tudo tem relação com o controle que deixamos crescer como erva de passarinho no meio da rotina. Quando éramos jovens a vida bastava, e sobrava tempo para que fizéssemos escolhas sobre o futuro. Parecia que ele nunca chegaria; só que chegou, de uma vez só, e atropelou nós dois. Eu sempre desejei pequenas vitórias que me lembrassem que sou homem e ainda tenho virilidade – penso que isso não é nada demais -, mas você não desejava as mesmas coisas. Aquela parte que dói no amor nunca foi sua. Aquela parte que trata de se dar em corpo e sangue, suportar, e dar-receber prazer de modo livre. Quando os meses já estavam se repetindo quase idênticos foi que percebi que éramos dois, e que olhávamos para lados diferentes o suficiente para que falar e gozar sobre nós fosse tabu. Já te julguei muito por isso. Agora não julgo mais. Não espero mais. Só vivo.

Em uma semana, me passa pela cabeça várias vezes como poderia fazer para te punir de um modo suficientemente exemplar e limpo – parecido com aquele seu jeito de chorar quando nós conversamos ou de resgatar depois de meses uma frase curta que eu te disse, apontando como eu sou insensível e não te ajudo a mudar. Imagino que são muitas as possibilidades dessa vingança. Vou ao beiral da janela, mas até agora nunca pulei. Não pulei e não acredito que farei assim, porque me acostumei a viver pela metade contigo, e às vezes penso que essa sensação do coração enterrado debaixo de um arranha-gato é a mais efetiva maneira de nos punirmos. Uma pena que isso resvale na Maria, ela não merecia crescer sabendo que seus pais se amam tanto a ponto de não existir qualquer desejo no ar. Ao menos enquanto as escolas valorizarem esse modelo de família ela vai se sentir privilegiada.

Eu amo você muito. Adoro quando sorri de coisas estúpidas ou quando tenta fazer algum comentário inteligente e troca o nome das personagens misturando filosofia alemã com algum personagem de um animação que assistiu. Gosto quando te vejo dançando e quando sorri sem parecer que está esperando que alguém te enfie uma faca na barriga. Até quando sente ciúmes de mim sinto prazer, porque nesses momentos tenho a sensação de ocupar seu lugar de desejo. Você entende se eu disser que, sendo bom, nada disso é o suficiente? Será que você acredita que é, Catarina?

Somos dois covardes, isso sim. Somos provavelmente o primeiro casal no mundo que se ama de menos porque se ama demais. Estamos juntos há vinte e cinco anos e consigo projetar essa ventura cenobita por mais cinquenta. Por que somos covardes a esse nível? Consigo criar na minha cabeça nossa separação, mas quando imagino te ver com outro homem que não seria nem um pouco do que eu sou, fico ofendido. Receber a notícia de que você está dormindo com um professor de zumba ou com o seu dentista me nivela por baixo e faz com que me sinta menor. Saber que talvez com eles você goze mais do que já gozamos é humilhante. Sei que você sente a mesma coisa sobre mim.

Quando eu era jovenzinho, nunca imaginei que me casaria um dia, embora sempre tenha sonhado com Maria. Vivi por ela minha vida toda, desde os catorze anos. Onde foi que perdemos o fio do que era mais bom do que ruim? Eu não sei. Logo eu que sei de tantas coisas, não sei mais. Perdi o controle.

Enquanto estou sentado escrevendo você ensina a Maria a fazer alguma lição de casa sobre regra de três. Te escuto dizer a ela que tem que multiplicar cruzando, mas ela não entende. Sua paciência é curta. Imagina como será quando for estudar fora? Tenho a sensação de que seu tempo só acontece depois, e prevejo o sofrimento de se sentir sozinha quando Maria se mudar daqui.

Escrevo sentado na cadeira e olhando aquele crucifixo que temos em cima da mesa da sala. Não me sinto muito diferente dele. Está ali faz muito tempo; Maria já tem onze anos e ele veio pra cá antes dela. Jesus tem os olhos preguiçosos de quem já sofreu tanto que não é mais o sofrimento que incomoda. Naquela cruz, daquele jeito, pelo ângulo certo, ele tem seu lugar no mundo. Eu e ele somos parte da família. Suspeito, no entanto, que ele seja mais feliz. Nunca foi tocado, a cruz é esteticamente erótica. Eu fui, mas a poltrona que me emoldura é bem menos original.

Viajo amanhã cedo para o Maranhão, e devo ficar pelo menos trinta dias por lá cuidando da implementação de uma nova filial da empresa. Calculo que eu volte antes do Natal e, dependendo de como tudo acontecer, podemos ir para a casa da sua mãe. Faço tantos ritos sociais, porque não fazer mais este?

Gostaria de falar abertamente a respeito de muitas coisas contigo, mas não consigo. Tenho visto minha analista mais vezes do que deveria e acho que estou me apaixonando. Ela é dezesseis anos mais nova do que eu, você a conheceu naquele dia em que nos encontramos todos no supermercado. Será só uma aventura, mas quer saber? Eu não ligo. Deveria me importar?

Se suas leituras continuarem no ritmo de agora, quando eu estiver fora você encontrará o meu desabafo. Decidiremos o que fazer da melhor maneira. Entenderei se me odiar.”


No dia dezoito de dezembro, ele voltou de viagem e encontrou a pilha de livros ao lado da cama exatamente do mesmo modo que deixou na manhã em que saiu.

“Você leu enquanto eu estava no Maranhão, amor?”

“Bem pouco, terminei um romance bem ruinzinho e pretendo começar o argentino por esses dias.”

Com cuidado, ele abriu o livro e se desfez de mais essa carta. Nada mudou dentro de si, mas o carma não foi favorável a que as coisas acontecessem naturalmente. Trinta dias era tempo o suficiente para que Catarina tivesse lido, se não aconteceu, mais uma vez deveriam voltar para a vida normal.

Acontece que ela leu. Como sempre, leu nas outras vezes em que ele já tinha escrito textos parecidos. Catarina nunca deixava que ele soubesse.

A vida acontece é assim.


Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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