Olhar perdido: uma análise de “Os Incompreendidos”, de François Truffaut

Um garoto que caminha entre infância e vida adulta, liberdade e opressão, vivendo livre pelas ruas de Paris quando não está sendo golpeado dentro de alguma instituição social. Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959) é o primeiro longa-metragem de François Truffaut e é considerado, junto com Acossado (À bout de souffle,1960), o marco inicial do movimento francês Nouvelle Vague. O garoto em questão é Antoine Doinel (Jean-Pierre Leáud) e a história é carregada de traços autobiográficos do diretor.

Assim como o protagonista, Truffaut não conheceu o pai, não tinha uma boa relação com a mãe, herdou o sobrenome do padrasto e viveu com a avó durante parte da infância, além de também ter sido um adolescente que cometia pequenos delitos pela cidade, como furtar cartazes do cinema. Em 1948, aos 16 anos, ele funda seu primeiro cineclube e se torna amigo do já renomado crítico de cinema André Bazin. Dois anos depois, Bazin usa de sua influência para livrar o amigo da prisão militar e lhe dá um emprego em sua nova revista: Cahiers du cinéma. Truffaut se torna crítico e editor da revista, e ajuda Bazin a desenvolver a chamada teoria do autor. Em 1955 lança Une Visite, seu primeiro curta-metragem, e, dois anos depois, o segundo: Os Pivetes (Les Mistons, 1957). Na abertura de Os Incompreendidos, depois de todos os créditos, temos: “Este filme é dedicado à memória de André Bazin”. O amigo e mentor havia falecido um ano antes da estreia do primeiro longa de Truffaut.

O filme se passa na Paris dos anos 50 e a cidade é, sem dúvida, uma das grandes personagens da história. Tanto que as primeiras imagens que surgem na tela são da Torre Eiffel e uma das cenas mais emocionantes mostra Antoine vendo a cidade ficar para trás, preso num camburão enquanto deixa cair uma lágrima.

Falando na participação intensa da cidade, podemos destacar a influência mais clara ao vermos o resultado do filme: o neorrealismo italiano. A proposta estética nos apresenta muitos planos abertos e cenas documentais de Paris, salientando a mistura real/ficcional. As filmagens não ocorrem em estúdios, mas nas ruas, com olhares curiosos das pessoas vendo a câmera em diversas tomadas, já que estavam simplesmente vivendo enquanto eram filmadas.

François Truffaut constrói uma narrativa que transita entre liberdade e opressão, utilizando a passagem entre infância e idade adulta como pano de fundo. Para tanto, nada melhor do que começar com uma turma de garotos no início da adolescência, na sala de aula e passando de mão em mão um calendário com a imagem de uma pin-up. O professor, extremamente rígido, podia ter olhado quando estava na mão de qualquer um, mas a sorte estava com Antoine Doinel. E é aí que o protagonista nos é apresentado, recebendo o primeiro de muitos golpes: ele fica sem recreio por causa do flagra.

Apesar de lembrar a ideia clássica de narrativa se comparada a outros filmes da Nouvelle Vague, Truffaut inclui sequências absolutamente contemplativas, que retratam o ambiente da história, mas não trazem algo crucial para seu andamento. Um bom exemplo é a cômica cena do garoto que vai derramando tinta e arrancando as folhas ao tentar copiar o que o professor escreve: a câmera está focada no problema do garoto e, em montagem paralela, vemos o mestre se virando para ver de onde vem aquele barulho, criando minutos de suspense cômico. Outro exemplo é a cena encantadora das crianças assistindo a um show de fantoches. O diretor capturou as reações mais puras de semblantes assustados, curiosos, animados e, por fim, carinhosos. Antoine também estava na sala assistindo ao show, pois, mesmo que quisesse ser independente (naquele momento ele havia fugido de casa pela segunda vez), ainda se encantava também pelas “coisas de criança”.

A relação de Antoine com a mãe (Claire Maurier) é um ponto importante para os conflitos gerados na trama. O garoto não recebe carinho em casa, a mãe lhe trata mal e até diz que não gosta dele. O terceiro morador é seu padrasto (Albert Rémy), de quem herdou o sobrenome Doinel. Uma cena muito interessante mostra Antoine, que estava matando aula, vendo sua mãe na rua beijando outro homem. Ela também o viu e, como os dois tinham culpa no cartório, quando se encontraram novamente passaram seus momentos mais carinhosos, principalmente por parte da mãe. 

É preciso destacar a brilhante atuação de Jean-Pierre Léaud, que estreava aos 14 anos. Posteriormente ele trabalhou com Truffaut em mais cinco filmes nos quais também vivia o personagem Antoine Doinel, retratando outras fases de sua vida. Mas, provavelmente, nenhum foi tão marcante quanto Os Incompreendidos. A sequência da conversa de Antoine com a psicóloga é de uma sensibilidade extraordinária. O garoto vai contando detalhes de seu passado e sua intimidade que ainda não haviam sido revelados, tudo de maneira tão natural que parece improviso. Nesta sequência Truffaut utiliza um dos recursos que mais marcaram a estética da Nouvelle Vague, os jump cuts: a câmera está focada apenas em Antoine, não vemos em nenhum momento a mulher que lhe faz as perguntas, e, a cada nova fala do garoto, temos um corte com um novo plano sobrepondo. Tal montagem intensifica o peso dos relatos, muitas informações novas daquele personagem em pouco tempo.

Antoine transita entre a tristeza da opressão e alguns momentos de felicidade e/ou liberdade. A catarse do garoto no brinquedo do parque é uma passagem muito marcante, na qual a câmera acompanha os giros intensos nos levando para a experiência junto com ele durante quase dois minutos. Uma curiosidade é que um dos figurantes que entra no brinquedo junto com Antoine é o próprio Truffaut (seu mestre Hitchcock também o influenciou na ideia de fazer um camel nos filmes). Outro momento feliz é indo ao cinema com a família (mesmo depois de o garoto quase ter colocado fogo na casa) e com o amigo (Patrick Auffay), outro jovem “incompreendido”. Mas Antoine apanha muito mais. Em duas cenas muito fortes, ele leva um tapa no rosto. Primeiro de seu padrasto, por ter mentido sobre a morte da mãe, e depois do “guarda educador” do Centro de Observação para Delinquentes Juvenis. O garoto chega ao ponto de ser preso na cela de uma delegacia junto com outros adultos.

Do início ao fim Antoine tem seus momentos de fuga, mas nada é definitivo. Quando ele nos olha de forma tão intensa na belíssima cena do primeiro encontro com o mar, depois de tanto correr ao lado da câmera no longo plano-sequência de Truffaut, vemos em seus olhos a incerteza de um garoto incompreendido. Um garoto perdido.


Referências:

en.wikipedia.org

Aulas do professor Robertson na disciplina “Cinema Mundial” da PUC Minas

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Flávio Miranda tem 23 anos, é músico, estudante de letras e, antes de tudo, escritor das ideias que lhe vêm a mente. Sempre gostou de escrever sobre tudo e, quando conheceu mais o mundo das artes, se propôs a fazer análises da construção de algumas obras. Atualmente, se dedica ao registro de vídeos para seu canal no Youtube e volta e meia publica textos em seu perfil no Medium.


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