JARDIM DE GUERRA, DE NEVILLE D’ALMEIDA, E OS CAMINHOS DO CINEMA POLÍTICO BRASILEIRO DURANTE A DITADURA MILITAR

Jardim de Guerra (1968), de Neville D’Almeida, é, do início ao fim, um exemplar típico do cinema moderno sessentista. Narrativa fragmentada, autoironia exacerbada, antinaturalismo manifesto em repetidas quebras da quarta parede, múltiplas referências à efervescência política internacional daquela década, protagonismo juvenil e um irresistível impulso libertário atravessando a encenação. Tais elementos denunciam a forte influência godardiana sobre esse primeiro longa-metragem de Neville, que segue sendo, até hoje, sua obra-prima. 

No entanto, lá pela metade da narrativa, Jardim de Guerra muda de rumo drasticamente, num gesto também muito moderno. A fruição solta e jovial, característica da primeira parte do filme, é subitamente interrompida por um ato de violência que dá origem a outros cada vez mais brutais. O filme se torna algo novo, ainda que também permaneça conectado ao que fora antes. Concretização cinematográfica de uma espécie de paradoxo brasileiro dos anos 1960: a convivência entre energias profundamente contestatórias e uma ditadura militar crescentemente repressiva. 

No enredo de Jardim de Guerra, Neville explicita o limite desse paradoxo. A repressão se sobrepõe à liberdade: Edson (interpretado por Joel Barcelos), rapaz errante e descompromissado, é sequestrado por uma organização misteriosa, imbuída de valores reacionários comuns aos do regime político vigente. Após ser exaustivamente interrogado sob tortura, é morto. A jornada antiteleológica de Edson, sempre aberta aos imprevistos possibilitadores da vida (inclusive ao amor, manifesto lindamente na relação com a personagem de Maria do Rosário Nascimento), é interrompida por uma realidade que se tornava imperativa no Brasil de fins dos anos 1960. 

Nesse sentido, Jardim de Guerra também dialoga com os “filmes de ressaca” feitos no pós-golpe de 1964: a errância modernista e a melancolia dos protagonistas de O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, O Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl e A Vida Provisória (1968), de Maurício Gomes Leite, reverberam aqui; mas Edson passa longe do engajamento político e da crise advinda de uma derrota acachapante nesse campo. Sua existência é organizada pela lógica da juventude contracultural e festiva, que trafega por temas mais “sérios” sem se comprometer diretamente com eles. O contraponto com o personagem de Antonio Pitanga é, nesse sentido, gritante: esse último surge, numa breve cena de Jardim de Guerra, vociferando diretamente para a câmera contra o racismo estrutural da sociedade brasileira e a hipocrisia dessa esquerda festiva. Ainda assim, Edson se torna uma vítima da ditadura, sintoma de um momento de exacerbação da repressão que estava em curso naquele ano de 1968.

Esse redirecionamento da narrativa surge espelhado na própria interdição de Jardim de Guerra pela censura, que impediu uma carreira comercial do filme à época. O cinema moderno brasileiro, politicamente demolidor, também se deparava ali com uma barreira de difícil transposição. Novos rumos seriam seguidos, muitas vezes marcados pela melancolia do exílio e pela falta de perspectivas profissionais. O que teria sido a obra de Neville D’Almeida sem a ditadura e a censura? Impossível saber.

A censura, aliás, agiu em vários outros casos ao longo dos vinte e um anos de ditadura militar como força promotora de interrupções e rearranjos nos filmes. As exigências de cortes geravam um tipo de intervenção direta nas narrativas, por vezes tornando-as incompreensíveis ou até ressignificando-as. O caso do final de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966), de José Mojica Marins, é exemplar nesse sentido, com o protagonista redublado para tornar a mensagem transmitida mais palatável: de descrente em Deus até o fim da vida, Zé do Caixão passa a clamar pela salvação antes de afundar nas águas de um pântano. Diretores e produtores, principalmente os independentes, viam suas empresas em risco diante da intransigência censória, mesmo quando se mostravam dispostos a cortar cenas consideradas incômodas. E muitas obras, totalmente proibidas, demoraram anos para encontrarem seu público. 

Há ainda aqueles casos mais extremos de filmes afetados não propriamente pela censura, mas pelos órgãos estritamente policiais do regime, como o curta-metragem Manhã Cinzenta (1969), de Olney São Paulo, cuja exibição num voo sequestrado por revolucionários do MR-8 colocou seu diretor na mira da repressão. Olney foi preso e torturado, experiência que contribuiu para sua morte dali a alguns anos – espécie de materialização realista da trajetória do Edson de Jardim de Guerra, que também faz cinema com sua amada no início da obra de Neville. Ou então, é claro, Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, que transcendeu o status de encenação ficcional de uma história real e se transformou num documentário sobre seu próprio processo de produção, interrompido pelo golpe de 1964. Nesses exemplos, filmar e/ou exibir um filme era, em si, arriscado. 

Quase quinze anos após Jardim de Guerra, outro filme contou a história de um homem sequestrado, torturado e morto por membros de uma organização paramilitar de extrema-direita no contexto da ditadura militar brasileira. Trata-se de Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, também proibido pela censura. Neville testara os limites da liberdade artística na antessala do período mais duro do regime autoritário; Farias fizera o mesmo na chamada “abertura”, que se anunciava como o apagar das luzes da ditadura. 

Mas há diferenças substanciais entre Jardim de Guerra e Pra Frente, Brasil, entre Edson e Jofre, o protagonista do filme de Farias interpretado por Reginaldo Faria. Diretor vinculado a um cinema de pretensões industriais, Farias seguiu aqui o “modelo Costa-Gavras” de thriller político realista, realizando um típico e muito eficaz exemplar do que Robert Stam e Randal Johnson chamaram de “naturalismo da abertura”. O sequestro de Jofre ocorre logo no início de Pra Frente, Brasil, sendo o ponto de partida de um enredo de conscientização, denúncia e forte envolvimento emocional, que ocorre por meio de uma série de estratégias narrativas características de um cinema convencional, muito bem manejadas pelo profissional competentíssimo que era Farias. A interrupção repentina e violenta dessa vida é tema, mas não forma. Já em Jardim de Guerra, Neville leva para a estrutura do filme a sensação de mudança inesperada e indesejada de rumo, que se dá realmente na metade da história. Ousadia modernista que, contraposta à linearidade mais óbvia de Pra Frente, Brasil, faz emergir a incômoda sensação de que o cinema político brasileiro encaretou ao longo da ditadura. 

De toda forma, essas características são condizentes não só com os cinemas realizados pelos dois diretores, tão diferentes entre si, mas com os próprios lugares sociais e geracionais ocupados pelos respectivos protagonistas: Jofre, o sujeito de classe média, com seus quarenta e poucos anos e autoproclamado apolítico, poderia muito bem ser pai de Edson e provavelmente demonstraria incômodo com o comportamento insistentemente transgressor desse filho hipotético – até sentir na própria pele os efeitos nefastos da ditadura militar.      

Jardim de Guerra, portanto, resiste ao tempo como um dos mais interessantes filmes políticos brasileiros da década de 1960 e uma estimulante porta de entrada para o cinema de Neville D’Almeida, diretor outrora maldito, mas que vem sendo, nos últimos anos, redescoberto e revalorizado. Ao mesmo tempo, a obra testemunha intensamente seu tempo, tanto pelos acontecimentos e pela estrutura da narrativa criada por Neville quanto pela interferência censória, altamente danosa. 


Wallace Andrioli é historiador, com mestrado e doutorado pela UFF, e crítico de cinema. Publicou o livro “Política como produto: Pra Frente, Brasil, Roberto Farias e a ditadura militar” (Editora Appris, 2020) e faz parte da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE). Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFJF sobre a censura ao cinema brasileiro durante a ditadura militar e atua como professor substituto de História Contemporânea na UFRJ.


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