A Criação do Processo de Criação

por: Beto Martins

Observar o próprio processo criativo pode ser um dos exercícios mais importantes na vida de um artista. Não importa sob qual “guarda-chuva” alguém se coloque dentro do universo artístico, em algum momento você será obrigado a “organizar” as atitudes que tem em relação ao seu próprio trabalho. 

Por ser um desenhista e estar inserido dentro do mercado de ilustração, eu vou trazer um olhar a partir desse prisma, mas que, eventualmente, poderá ser aplicado à outras áreas. Afinal, o processo criativo não nasce, não cresce e nem evolui sozinho.

CONFIE NO SEU PONTO DE VISTA 

Há 12 anos atrás, não existia tanta informação sobre ilustração digital (por exemplo) como existe hoje, a escassez fazia com que os artistas montassem “belos labirintos” em seus processos, simplesmente por não terem conhecimento de outros artistas atuando ou fazendo algo semelhante a eles. A falta de informações os pressionava, ou a fazer um execício de tentar criar algo do zero, ou de se debruçar repetidas vezes em uma mesma referência. Acredito que isso gerava um sentimento de “último samurai”. Olhar para o lado e não ter referências sobrando, fazia com que os artistas desbravassem sozinhos uma série de padrões visuais e estilos.

Hoje a informação invade o espaço particular das pessoas. Literalmente, são tantas opções e referências, que começamos a lidar com sentimentos que nem sabíamos que tínhamos: “síndrome da contemplação sem propósito”, o vírus do “é impossível chegar nesse nível”, a bactéria do “fazer é melhor que aprender” e entre outras. A verdade é que o mundo anda tão rápido que considerar a trajetória de um artista com muitos anos de caminhada é quase um insulto. É claro que ninguém tem tempo para esperar 30 anos para começar a se encontrar dentro de um mercado e ganhar dinheiro. Isso nos tira do foco e nos atrasa.

No início de um processo criativo, muitas vezes é passível de colher uma ou outra referência, mas, confiar na própria intuição nesse momento é que vai te dar uma “voz” mais peculiar, mais parecida com você. Quais são suas experiencias pessoais, suas percepções sobre o mundo, seu olhar? Uma artista brasileira conhecida no mercado editorial e de jogos, Caroline Gariba, disse em um podcast que com ela: “a arte só acontece a partir de um sentimento pessoal”, quem sabe esse é seu ponto de partida?

QUEM NÃO TEM DINHEIRO CONTA HISTÓRIA. 

Pensar que aqueles que não tem dinheiro são contadores de histórias, é um absurdo (risos). Perder a capacidade de contar uma história ao criar uma peça é um erro que muitos cometem, principalmente ilustradores. Dentro desse mercado, quem está no “começo da calda”, são os artistas que criam splash arts, peças que são criadas para chamarem a atenção das pessoas, vender produtos. Geralmente são artes muito coloridas, com um contraste bem exagerado, para atrair determinado nicho. É lógico que todos querem estar envolvidos em projetos desse tipo, e, pior, começam a reproduzir o que esses artistas que estão em um nível de detalhamento e percepção anatômica e valores tonais muito mais elevados que outros artistas. Por isso, acredito que esse desejo de gerar os mesmos resultados que determinado artista mata a vontade de simplesmente querer contar uma história.

Note: não estou falando de história em quadrinhos aqui, (apesar de saber que também cabe), mas a reflexão que quero deixar é o quanto os pormenores das suas criações contam histórias. Criando um personagem, é possível saber da onde ele veio, quais suas motivações, sua nacionalidade, se ele está com medo, alegre ou com fome. Sim, é possível contar histórias com imagens.  

Uma pintura de um homem e uma criança montados em um cavalo, podem emocionar pessoas, tudo por causa do storytelling, a capacidade que tudo ao seu redor tem de contar uma história sobre ela própria, ou fazer referência a algo ou a alguém.

Ter a preoupação de se perguntar “Qual história eu vou contar com essa pintura” é ir além de apenas criar algo bonito. Ao criar, perceba a idade das coisas, as fases do dia, o que determinada pose transmite, quais os valores que seu personagem possui. 

FEITO É MELHOR QUE PERFEITO  

Depois de estruturados o seu ponto de partida e a trajetória que será trilhada, o esforço agora consiste em materializar a ideia. Como eu disse, minhas criações são mais gráficas, como ilustrador, esses processos pra mim são fundamentais. O que está por trás do que se cria, muitas vezes é mais importante do que o resultado final. É claro que a capacidade técnica nesse processo “final” é um caso à parte. É uma grande jornada, mas após alguns anos criando e reformulando meu próprio processo, é possível perceber o quanto a mensagem acaba se tornando mais importante que a forma, que o resultado visual.

Quero dar um exemplo rápido do meu processo em uma ilustração que fiz em 2018. A ideia era criar uma peça que representasse personagens pelos quais eu me identificasse, pois iriam ser personagens autorais. Eu teria que representa-los em uma pose de ação em uma mesma arte, o desafio foi grande, mas o exercício me levou a um resultado inesperado. 

Escolhi representar três personagens. Para fugir do óbvio decidi que seriam três moças afro-decendentes, brasileiras, que tinham o cabelo como ponto de destaque em seu visual. Depois pensei em qual história elas estariam contando (ainda que não esteja claro na peça, é importante definir isso, pode influenciar no gestual e no estilo das personagens). Decidi que elas moravam no bairro onde eu morei na infância, e que teriam características de três irmãs que convivi na adolescência. Elas eram petulantes, ousadas, debochadas, sensíveis e corajosas. Dentre outras qualidades, me lembro que, apesar de pobres, eram inteligentes e sabiam se comunicar.

A partir daí ficou mais fácil, o palco estava montado para os personagens da minha pintura atuarem. Com esse processo fica difícil estagnar uma criação ou perceber, lá no final do processo, que ela não transmite nada. Agora, as decisões mais difícies tem um chão para serem tomadas, pois o principal erro que muitos criadores tem quando vão criar algo, é que, organizar processos é criar um solo fértil para ideais boas se desenvolverem. 

Beto Martins (Viana Black Estudio) 

@vianablack 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *