A Colonização da Arte: Um Ensaio Sobre Processos de Composição Musical.

Pensar em originalidade musical me remete ao Papa Gregório na Alta Idade Média (século VI) e é daqui que partiremos para pensar processos de composição musical. Gregório trouxe para o âmbito daquilo que era a expressão máxima do divino – a saber a Instituição Igreja – uma prática pública que era constantemente associada às devassas camponesas, por exemplo. As continuidades em vista de deveras transformações são claras: a originalidade converte, se passa de auto explicação e amplia sua atuação. Do profano ao sagrado, a música entrou nos templos pela porta da frente, sendo agora ferramenta de uso devocional, com suas devidas regras e estilísticas, ao mesmo tempo em que a manutenção de seu uso fora dos templos era feita pelos degredados do paraíso.

A música encontrou lar plural pela capacidade de adaptação. De fato, a sua existência parte do princípio de que há uma demanda pela tradução dos sentidos presentes nas relações humanas e, até mesmo, com o divino. Ao fim e ao cabo, música é uma moldura composta por diferentes expositores. Pessoas criam música. Pessoas dão nome a sua arte. A arte é plural.

Uma arte que não respeita sua regra máxima, a saber, a proposta da originalidade, abdica de uma identidade própria e desconfigura ainda aquele que a expõe. Música enquanto processo artístico possui o seu lugar ao sol, possui função social e, por isso, mais do que demanda, mas tem por ímpeto uma autenticidade em todo o seu processo de construção, tendo em vista que esta responde a afirmação de identidades, marginalizadas ou não, ao longo da própria história.

A partir da metade do século XVIII, nota-se que o cenário musical começava a se sobrepujar dos grandes templos e respondia, de forma pública e comercializável, os anseios daqueles que queriam contatar essa arte, seja para apreciá-la de uma forma “inofensiva” ou para buscar nelas respostas para os grandes blocos de dúvidas existenciais que sempre nos cercaram.

Wolfgang Amadeus Mozart

Fazendo um grande salto no tempo, faço referência ao século XX enquanto um tempo de profundas transformações e respostas sociais, políticas e econômicas sobretudo no ocidente. De forma mais precisa, a indústria fonográfica brasileira teve o seu auge gestado pelas novas demandas do século citado. Muda-se o ouvinte, portanto, muda-se os seus questionamentos, incertezas, desconfortos e indagações com o presente. Assim, um aspecto importante que esmiuçarei é: muda-se o “fazedor” da arte, portanto, muda-se os seus questionamentos, incertezas, etc infinita… muda-se o seu propósito de composição e, consequentemente, produção. Sobrevivemos ao século das possibilidades e entramos no XXI, tendo como perspectiva, novos horizontes. Estamos em 2019 e a demanda mercadológica se sobressai àquilo que, de fato, nos mobilizava nos processos de composição: a autenticidade. Em análise macro dos temas musicais mais apreciados pela sociedade contemporânea, nota-se uma sequência rítmica e um vocabulário padronizado, que é julgado a partir de uma mercadologia excludente.

Como visto inicialmente, música não perde sua função pela falta de autenticidade, ela se adapta para responder o que de mais distinto há. Todavia, perde e desconfigura sua essência, ou melhor, a essência daquele que a cria. Perder-se no processo e abdicar-se de uma identidade própria é um dos fatores mais comuns que se faz de forma inconsciente, e, triste é perceber o descarte identitário feito de forma consciente para atender um mercado. Nesse sentido, atender a um mercado cristalizado não é um pecado capital para o artista (quem sobrevive de arte sabe o valor que o reconhecimento tem). Seu maior pecado é medir arte pela suficiência ou insuficiência de sua produção, rendendo-se ao molde e tornando-se só mais um.

Se a escrita demanda um estudo linguístico e a construção melódica uma teoria musical, penso se de fato expomos nossos trabalhos por representação e compromisso, ou se as prisões criativas tornaram tudo enfadonho, a ponto de nos expor a pior das situações: o plágio consciente.

É necessário descolonizar a nossa arte das pressões e índices externos que nos condicionam a um processo de criação que não é articulado por nós, porque, enquanto existir uma subserviência explícita a uma regra para exposição artística, haverá um óbito criativo que – em linha reta – guiará ao abismo da não-criação, e que ao contrário de criar algo, consistirá em repetição, nos tornando, assim, insensíveis para o que, de fato, a música tem como função, a saber, anunciar as minúcias da vida e as relações que a cercam.

Descolonize sua arte!


Gyovana Machado é graduanda em História pela UFJF, formada no Seminário Teológico Rhema Brasil, líder de música em A Igreja.


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