Rotina

Marta era casada há dez anos. Desde pequena não sabia muito bem o que significa se casar, e também não imaginava o que deveria fazer ou o que era proibido para encontrar um bom marido. Namorou alguns rapazes do bairro, mas eram apenas namoricos. Se casou rápido, com o primeiro que lhe tocou fundo. Raul era o primeiro, o grande, mas agora ela remoia uma dúvida ruim: era o único?

A rotina não era a mesma desde a última vez em que os dois tiveram uma crise. Ele se sentia homem, mas, homem, para ele, significava prerrogativas que ela não poderia ter. Saía quando queria, bebia, sempre pairava no ar uma suspeita a respeito de ter outras mulheres. Se ela não tinha outros homens, por quê ele poderia quebrar o combinado? O que tinham era um combinado, que a cada dia parecia mais com esse tipo de acordo que se faz jovem demais para durar a vida toda.

Marta dormia no lado esquerdo da cama, ao lado da porta do banheiro. Desde que foram morar juntos – mais ou menos seis meses antes de se casarem de fato – ela foi desenvolvendo seus rituais de dormir. Travesseiro entre as pernas, virada para a parede, uma das mãos por debaixo do travesseiro e dentro da fronha. Não gostava de cobrir os dois pé, deixava um deles de fora. Fizesse frio ou calor dormia coberta. Com o corpo acomodado passeava pelo dia se lembrando do que tinha feito, do que gostaria de ter feito e do que fantasiou fazer. Assim o sono ia crescendo até o momento em que as três coisas não eram mais diferentes na sua cabeça e então ela começava a sonhar. 

Talvez de um mês ou dois para cá já não existia posição em que conseguia pegar no sono. Mesmo repetindo o ritual, o colchão era duro demais e parecia estúpido colocar uma das mãos por dentro da fronha. Quanto mais tentava se lembrar do dia que passou ou planejar, ouvia cada ruído que Raúl fazia deitado, e se irritava com isso. Espalhado no outro lado da cama ele dormia com a barriga apontando o teto. Mesmo que não fosse gordo, tinha essa barriga,  era corpulento. Não roncava propriamente, gemia. Soltando de vez em quando pequenos grunhidos em que parecia perder o ar por dois ou três segundos. Às vezes acordava assustado, olhava pra Marta – ela fingia dormir – e voltava a cochilar maquinalmente. Ele dormia de uma maneira feia.

No início dos problemas só se falavam menos, mas a distância era justificada pelo trabalho, ou pela mãe de Raul que era doente e precisava de cuidados, o que fazia com que os irmãos se revezassem em visitas e idas ao médico. Aos poucos se explicavam que era a rotina da vida a dois e ensaiavam brincadeiras, mas não funcionava, ou melhor, funcionava, do ato de ser funcional. Não se casa, entretanto, com mentalidade de ser funcional, se casa para ser feliz. Isso ela ouviu da mãe, da avó, da novela, de professores, de um livro de Tolstoi que tinha lido. Não se sentia feliz há tempos. Mas cada noite que se deitava ou quando estava no banho Marta pensava se não deveria ser sempre assim, porque amava Raul. Além disso envelheceu junto ao marido. Sabia como arrumar as gavetas do jeito que ele gosta e demorou a aprender a cozinhar uma receita de camarões e legumes que ele semanalmente pedia pra repetir. “Dez anos não são dez dias” – dizia a si mesma. Passava de cento e oitenta dias a dificuldade para dormir e a sensação do vazio na cama e no peito.

Numa segunda-feira, quando ia sair para o trabalho, Marta percebeu de relance seu corpo no espelho grande que ficava no quarto do casal. Era o lugar onde conferia o rosto quando terminava de pentear os cabelos, se certificando de que não tinha esquecido os brincos desta vez – ela era mestra em fazer isso. Seus seios estavam à mostra. Na mão direita segurava o sutiã que vestiria em seguida, mas que largou em cima da cama. Ficou de frente a si mesma refletida na lâmina de prata e vidro. Aqueles seios eram seus? Não se lembrava deles assim. Com a ponta do indicador direito fez o contorno das aréolas rosadas como se estivesse ao mesmo tempo desenhando e reconhecendo uma cartografia subitamente revelada. Desceu com os dedos na direção do umbigo seguindo o traçado natural dos desníveis do corpo. Enquanto estava refletida no armário ia se descobrindo em epifanias.

Marta estava um pouco atrasada, mas não ligou. A sensação era de que estava anos atrasada naquela contemplação. Resolveu tirar a calça jeans que vestia. Tirou também a calcinha e ficou completamente nua. Sentiu pudor de ver a quantidade de pelos entre as pernas, e ainda um pouco mais quando continuou desenhando a si mesma na metade de baixo do corpo. Aquilo era uma mulher. Ela fora uma mulher por décadas, porque ninguém a ensinou a ser assim?

Como se respondesse a um chamado imperativo subiu os olhos e encarou o seu olhar frente a frente. Viu que tinha olheiras, um pouco de sardas. Sem muita certeza se lembrou de que a última vez em que se maquiou foi no dia do casamento. Por quê exatamente tinha parado? Não sabia. Isso incomodou. Ainda nua foi até uma gaveta no banheiro buscar sua base, um lápis de olhos que estava praticamente novo e o batom que ganhou de aniversário de uma colega de trabalho no ano passado. Não sabia como fazer, mas não se importava. Continuava desenhando a si mesma e amando o resultado. Alguém que lhe visse diria que exagerou, isso pouco importa.. 

Em seguida foi se vestindo aos poucos. Experimentava calcinhas e trocava em seguida. Acostumada a calças, decidiu que vestiria uma saia de pregas alaranjada que combinava muito bem com aquela blusa que compraram quando tinham viajado para o Recife. Naquele dia ela não foi trabalhar. Testou as diversas versões que tinha de si mesma uma após a outra, e quando viu que era bom decidiu esperar que Raul voltasse para casa e  a visse assim também.

Por volta das dezenove e trinta o marido chegou. Não tinha bebido, estava agitado por algum desentendimento que teve com o Marcelo, um colega de trabalho que normalmente aceitava tudo que Raul fizesse sem reclamar, mas, naquela semana, não estava muito bem e resolveu tirar satisfação. Foi uma discussão feia que terminou com a ordem do chefe para que se dessem as mãos e comprometessem a ficar em paz. Todos presenciaram a humilhação e ele estava desolado.

Desde que abriu a porta Raul não parava de falar na medida em que tirava a roupa e se largava no sofá da sala onde começou a mexer no celular. Ela esperou toda a noite que ele a notasse, mas não. A impressão é de que não a via, ele só via a si mesmo. A esposa era um “ele” fora de si mesmo. 

Jantaram em silêncio. 

Após a refeição Raul entrou no banho. Quando saiu Marta não estava em casa. Raul tentou ligar uma ou duas vezes, mas ela não atendeu. Imaginou que alguma bobagem tinha acontecido e que ela voltaria logo. Esperou na cama por quase quarenta minutos, ligou de novo. Como ela não apareceu resolveu dormir com a luz do quarto acesa para saber quando ela voltasse. A noite transcorreu sem sobressaltos para o sono de Raul, mas Marta não voltou. Ele ainda não sabia, mas a esposa não voltaria mais. 


Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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