Desumano

Quero contar uma história. Bem, na verdade, essa história está registrada em uma passagem bíblica. Não, não vou falar – pelo menos não de modo direto – de crença ou religião. Não quero também ser traído por qualquer anacronismo ao tecer algum tipo de julgamento acerca da passagem, mas ela vai ser útil, muito útil, para elucidar minha linha de raciocínio. Introdução feita, sigamos. O capítulo 19 do livro de Gênesis narra a saga da fuga de Ló e sua família da cidade símbolo de falência moral, ética e social: Sodoma. O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, não gratuitamente, batizou uma de suas obras – que já chegou a ser considerada uma das mais fortes da história do cinema – de “Salò ou os 120 de Sodoma”. Se arrisquem no universo “googleniano” e leiam sobre o filme. Se depois disso se sentirem prontos para experimentar as sensações causadas pela obra – eu não me senti, apesar de tentar – experimentem e tenham uma ideia do que significava a cidade destruída por uma saraivada flamejante. Mas eu quero me ater a um ponto específico do texto bíblico, acontecido no início da narrativa. Ló estava sentado bem na entrada da cidade, à porta de Sodoma, quando avistou dois anjos chegando. Insistiu em os receber em sua casa, dar de comer e também ofereceu conforto para o descanso dos visitantes. Quando os estrangeiros já estavam alojados, os locais, que haviam presenciado a chegada dos dois, foram à casa de Ló e insistentemente batiam à porta e exigiam que Ló levasse os anjos para fora para que pudessem ter relações com eles. Sim, a bíblia traz este relato e ainda deixa explícito que eram todos homens. Os homens queriam fazer sexo com os forasteiros. Sem consentimento, sem considerar o outro. Apenas queriam e exigiram de Ló a entrega dos visitantes às suas vontades. A partir daqui as coisas ficam – no mínimo –  um pouco mais esquisitas. Ló, que reconhecia nos anjos uma presença digna de adoração, se sentiu na obrigação de defendê-los. E assim o fez. Não de um modo ortodoxo ou admirável, mas fez. Saiu, se colocou à frente da porta e tentou negociar com os locais. Pediu para que não fizessem mal aos anjos e ofereceu, como possível recompensa ou moeda de troca, as duas filhas virgens. “Tenho duas filhas virgens. Eu posso as trazer e podem fazer com elas o que bem entenderem, só não toquem nos visitantes”. Um tanto espantoso, talvez isso cause repúdio, mas foi assim que Ló tentou resolver o conflito. O que esses homens tinham em mente? O que passou pela cabeça deles? Como podem exigir a exposição de desconhecidos às vontades e desejos de outros, somente por puro prazer? Como pode um pai oferecer as filhas virgens como moeda de troca sexual para a solução de um conflito? A história é absurda, e mostra que eram tempos mais estranhos do que o mundo ocidental pode compreender. Bem, eu achava que eram tempos mais estranhos. Mas estava – e estou – errado. 

Jurerê. Famoso bairro da cidade de Florianópolis. Lá é possível encontrar frescor de praia em dia quente, um azul impressionante na água, dupla sertaneja gravando DVD e gente, muita gente. É um desses lugares que já conhecemos, ao menos de relatos ou porque visitamos locais semelhantes, onde tudo inspira, expira, transpira ostentação, riqueza e uma sensualidade estetizada. Mariana Ferrer é jovem, bonita, atua nas redes como influencer e, justamente por causa dessas credenciais, recebeu um convite do luxuoso beach club Café de La Musique para trabalhar como uma de suas embaixadoras. O relato totalmente exposto nas redes sociais da própria Mariana e também em uma trhead no perfil de Cris Dias, no Twitter, traz uma gama inacreditável de possibilidades que uma pessoa tem para ser cruel. Como já se sabe, homens são muito mais que privilegiados em nossa sociedade. Sendo ricos e brancos, eles também são bajulados e protegidos. Usufruindo dessas facilidades, é um “absurdo comum” que homens se sintam no direito de invadir o espaço de mulheres na intenção de fazer com elas o que bem entenderem. Por vezes, existem até locais reservados para práticas abusivas – práticas que há tempos já foram normalizadas. O caso de Mariana é mais uma dessas práticas. Aos habituês do beach club de Jurerê, a existência do “matadouro” não é novidade. Um lugar reservado, onde homens podem levar quem quiserem para fazerem o que tiverem vontade de modo privado. André de Camargo Aranha, que atua no ramo do marketing futebolístico, é um desses homens que frequenta e usufrui dos privilégios oferecidos no local. Níveis de álcool elevado e a libido doentia masculina, que parece alcançar níveis ainda mais nocivos somada ao excesso de álcool, formaram um coquetel desastroso. André levou Mariana, nitidamente sob efeito de alguma substância entorpecente, para o “matadouro” e a violentou. Não fosse isso suficientemente terrível, o estupro levou embora à força a virgindade de uma menina de 20 anos . Mariana relata traumas causados pelo episódio até hoje. Como se não pudesse piorar, os prints da conversa entre Mariana e as amigas que estavam com ela é de fazer vomitar. Enquanto Mariana chora e pede socorro em mensagens de texto e áudio, a resposta que recebe é que as amigas, em companhia de amigos do estuprador, não podiam ajudar porque tinham acabado de pedir algo pra comer. Não podiam sair dali agora.  

Ló, André, as amigas de Mariana, Suzane von Richthofen. Com toda certeza, a definição de desumano dada pelos dicionários se aplicaria nesses casos e pessoas. Falto de humanidade; bárbaro, cruel, desalmado, que demonstra desumanidade; anti-humano, atroz, duro parecem ser características comuns a cada nome citado. Mas eu pergunto: será? 

Não é incomum, e tampouco raro, ouvir por aí que todos que cometem algo extremamente absurdo são desumanos. O prefixo é de origem latina. “Des” tem a função de denotar ação contrária, negação, separação. Se tomamos por base que o que de melhor podemos ser é sermos mais humanos, logo, o que de pior de pode ser é o humano precedido do prefixo citado. Para construir essa – ou qualquer outra – linha de raciocínio é necessário recorrermos à lógica. A lógica, que se configura por um modo de organizar ideias e ações de forma que sejam consoantes com a realidade, é base do pensamento, da construção das ideias, segundo Aristóteles. A lógica aristotélicas propõe a existência de três leis para a fundamentação do pensamento. Uma das três leis do pensamento é a Lei do Terceiro Excluído. Basicamente essa lei afirma que: uma coisa é o que se diz dela ou é o seu oposto, não há uma terceira possibilidade. Ou seja, na visão dicotômica e viciada com a qual costumamos classificar pessoas, nós somos humanos ou somos desumanos, não há uma terceira via. Mas, uma vez estando claro – partindo da premissa dicotômica – que desumano é um oposto de humano, quando eu afirmo que uma pessoa não é humana e tomo isso por verdade, o que isso significa? Qual é a definição de oposto ao humano? Animal? Coisa? Como deve ser tratado o oposto do humano? Com a dureza que se trata um animal rebelde que precisa ser domesticado? Mas esse processo de domesticação do humano já foi explicitado por autores como Freud, Marx, Lukács, Weber, Geertz, Adorno, Habermas, Bourdieu e tantos outros. Esse processo se chama cultura. Sendo assim, é inegável que o processo civilizatório trouxe o que se entende por um “mal estar na civilização”. Mas isso não roubou de nós a humanidade. Devemos tratar o alguém que consideramos desumano como coisa, então? Se quebrar, consertamos. Se não gostamos, jogamos fora. Não me parece muito cabível. Diferente dos animais e das coisas, homens não são plenos. Não no sentido existencialista. Onças são onças. Cadeiras são cadeiras. Mas homens e mulheres não são e ponto. Todas as cadeiras são cadeiras. Todas as onças têm características comuns. Nenhuma delas se pergunta o motivo de fazer o que fazem. O homem e a mulher, a humanidade, vive buscando se definir, se compreender, se encontrar. A humanidade não é em si, mas é para si. Nessa busca, fazemos escolhas – ou não as fazemos também. Podemos ser educados, mas podemos ser ignorantes. Podemos ser cordiais, mas podemos ser violentos. Mas isso só cabe a nós. Cadeiras não ofendem por saberem que ofensas machucam e causam danos emocionais. Onças não fazem reuniões para discutirem sobre os rumos da sociedade na qual estão inseridas, nem colocam em pauta o perigo do consumo abusivo de plástico e produtos industrializados nocivos ao meio-ambiente. Cadeiras não traem ou se apaixonam. Onças não estudam propostas de emprego ou aceitam propina. Entende o que quero dizer? O que existe de pior em nossas ações também é o que de mais humano – demasiado humano – há. Não existe natureza humana, existem ações humanas, que só cabem a nós. Portanto, não havendo um definição em si, que encerre o conceito de oposição direta ao humano e não podendo o homem ser ao mesmo tempo o que se afirma dele e seu oposto, desumano pode significar ser um não-ser. Um não-humano. E o não-humano pode ser qualquer coisa, porque não existe definição para o seu estado. O não-humano não é em si, como cadeiras e animais, mas também não é para si, pois não se revela nele uma busca pelo ser, uma vez que sua condição é um não-estado. São dois caminhos muito perigosos que se apresentam a nós ao crermos no desumano ou no não-humano como adjetivos. É preciso ressaltar aqui, antes de nos debruçarmos sobre os caminhos em si, que o conceito “natureza humana” já não se sustenta e, de certo modo, já foi superado por outras teorias filosóficas, sociológicas e psicológicas. Ainda assim, foi partindo da ideia de natureza, como sendo um estado primitivo do ser, que no século XVIII foram erigidos conceitos e ideias importantes para o desenvolvimento cultural da vida em sociedade. Uma vez esclarecidos os pontos necessários, vamos aos caminhos. O primeiro rumo perigoso que podemos tomar é crer que o homem, semelhante ao que pensava Rousseau, é bom por natureza, definindo por humano tudo o que é livre, harmonioso, pacífico. Rousseau condiciona o processo civilizatório – como citei algumas linhas atrás – como o causador desse mal-estar no qual a humanidade se encontra. O homem é bom, o que não é tão bom é a forma como a modernização engole essa natureza. Mas como não há a possibilidade de vivermos em estado natural pleno e muito menos podemos negar os avanços benéficos da modernização, o ideal é que a natureza e a modernização se realizem mutuamente em sociedade, como um contrato socialmente firmado. Lançando o olhar rousseauniano sobre a questão do desumano, observamos que desumanização significa um distanciamento do bom. De modo prático, desumano, definido como oposto do binômio humano/bom, é ser mau. Mas há quem acredite numa natureza selvagem, vil, movida pela cega necessidade instintiva de sobrevivência. Esses são os que nos apontam para o segundo caminho, e fazem coro junto a Hobbes. “O homem é o lobo do homem”. Em suma, o homem é por definição mau, o que não nos permite assombros ou espantos diante da maldade, já que é isso que se espera do humano. Por isso o processo civilizatório se faz mais do que importante, necessário para que existam limites condicionantes à natureza do ser, visando uma regulação das relações a fim de manter intacta a maior das propriedades: a vida. Esses caminhos, quando tomados por verdades irrefutáveis, nos conduzem ao mesmo abismo: o abismo de encerrar o conceito de humanidade em um estado natural que só se modificou por conta dos processos condicionantes, furtando do humano as infinitas variáveis de ação. Não há mau natural ou bem natural. Se eu afirmar que existe um mau ou um bem que se realizam na minha natureza, eu não tenho escolhas. Mas se percebermos que o humano se faz nas possibilidades do ser, desumanizar é e tomar do outro qualquer vislumbre de mudança de convicções. É condenar o outro a um não-estado, onde somente o nada e o desprezível lhes são perfeitamente cabíveis. Não há redenção ou justiça nesse processo. Quando  desumanizamos alguém, limitamos todas as suas possibilidades de ser. O não-ser é uma existência indigna. Não há quem se importe com o não-ser, muito menos quem o leve em consideração, afinal, ele não é gente, não é humano, não é coisa. O não-ser é um nada, e como nada que é, merece o pior do pior. Aos desumanos, pena de morte. Aos desumanos, sexo corretivo. Aos desumanos, jejum punitivo. Aos desumanos, violência coercitiva. O não-ser se encontra em um limbo onde não há redenção, mas também não há indiferença. Em relação ao não-ser há apenas repulsa, um ódio travestido em indignação. 

O humano não é só bom, o humano não é só mau. Mas o que de melhor ou que de pior pode ser feito pela humanidade é uma expressão máxima do ser humano. A lógica punitivista do desumano justifica a guerra, justifica a violência, justifica tudo aquilo que se busca combater ao usar o termo. Não existe humano que comete crime, só existe criminoso? Não existe humano que mate, só existe assassino? Não existe humano que roube, só existe ladrão? Roubar, matar, destruir. Cometer todo o tipo de crimes é sempre associado ao desumano, porque ser humano é agir e ser o oposto do que criminosos são e fazem, por exemplo. E se a sociedade abriga em si a existência de pessoas desumanas e violentas, porque não posso me defender com uma arma e também matar, apenas para manter intacta minha humanidade? Na lógica da punição, humano é um status. É uma posição ocupada na estrutura social, que me afasta de tudo que é perverso e imoral. Por isso o humano tem direitos, o desumano não. 

        Porém desumano não é o agir mal, muito menos o ser mau, mas é o resultado de um processo de esvaziamento do outro. Desumanizar não é se desprender das convenções humanas e agir intentando contra a vida, mas é privar o outro de qualquer possibilidade de justiça, derramando sobre ele a fúria instantânea e impulsiva do justiçamento. Consegue ver o quão perverso é o ato de desumanizar? Hitler não acreditava que judeus ou negros fossem humanos dignos. Mas tão humano quanto os judeus e os negros, era o próprio Hitler. Ele não estava fora de sua humanidade quando arquitetou e executou seu plano de dominação autoritária e sangrenta. Nenhuma guerra foi desumana, por mais cruel que tenha sido. Nenhum não-ser é capaz de produzir bombas, de manipular informações, de matar pelo poder. Essas são ações humanas. O humano mata os pais, estupra a virgem, oculta cadáveres. O humano é morto, violentado, esquecido. Há em tudo isso, em todos esses, humanidade. Porque ser humano não significa ser puro/bom, muito menos sujo/mau, mas significa que somos capazes de imaginar, planejar e agir da pior forma ou da melhor forma possível. Desumanizar é uma ação do humano. Mas ser tão humano quanto o outro me aproxima do outro. Eu que “nunca fiz o mal” sou tão humano quanto um assassino em série. Eu que nunca salvei uma vida da morte, sou tão humano quanto heróis de guerra. 

Diante de nós se revela uma mesa farta, um banquete de ações. De quais delas vamos nos suprir, cabe somente a nós. Hoje o mundo se vê obrigado a se encolher, se guardar em prol da sobrevivência. Os noticiários, os novos adereços agregados às vestimentas habituais, os novos hábitos, tudo aponta para a transformação que atravessamos. Um mal invisível se pôs entre nós, exigiu a distância, fez das janelas nossa via de acesso mais crua ao mundo. Frente tais restrições, é humano seguir recomendações básicas para diminuir o risco de morte, como também é o seu inverso. Ser humano é ser responsável, seja pelo que for. As ações estão expostas, nos resta escolher. Desumanizar é restringir do outro qualquer acesso à dignidade.  Desde quando comecei a escrever esse texto, há meses, até o dia de hoje, muita coisa aconteceu e me colocou diante dessa realidade da desumanização como um projeto humano. Doutor Dráuzio Varella experimentou um “webmassacre” por ter abraçado uma mulher trans, presidiária, que não recebia visitas há muito tempo. O motivo do “webmassacre” foi a razão pela qual a mulher estava presa: tinha assassinado uma criança. Bom, juridicamente, justiça está sendo feita. Ela está presa, tem sua liberdade devidamente privada, está socialmente isolada. Mas a lógica dos bons/humanos, “cidadãos de bem”, coloca a mulher como centro do projeto de desumanização. Uma vez que ela comete um crime hediondo, a justiça não é feita com a prisão e o isolamento, muito menos com os desdobramentos psicológicos que anos de confinamento podem trazer, mas a justiça se realiza no “justiçamento” da privação total de qualquer gesto de empatia. Desumanizar é fazer um bolão pra saber em quantos dias o “youtuber pedófilo” vai se suicidar, e torcer pra que isso seja feito em breve. Eu sei, é incômodo e delicado assumir que ninguém é desumano, mas que desumanizar é um projeto humano. Isso nos coloca muito próximo do estuprador, do racista, do assassino, do pedófilo. Ninguém quer se sentir perto de pessoas que agem tão mal, que ferem, que matam, que são ignorantes. Mas, o que se deve deixar claro é que não há qualquer defesa ou justificativa para os atos violentos, hediondos e prejudiciais. Matar não é bonito, não existe beleza na guerra, não existe violência poética. Quem comete crimes, deve pagar pelos crimes, deve receber a condenação devida. Os que causam sofrimento, devem ser privados de sua liberdade e ver a vida em cárcere se realizar. O que não pode existir é uma ideia de humano e desumano como um nós/eles, onde nós temos nas mãos o trunfo da humanidade e eles, como desumanos que são, não merecem nada de nós a não ser mais violência, mais crueldade, mais sangue derramado. Olho por olho, todos ficam cegos. Dente por dente, todos definham e engasgam.

O mais irônico na história da civilização ocidental é que baseamos todo o conceito de humano e desumano na crença de um Deus humano. Um Cristo divino que se fez carne e osso. Enquanto o Deus feito homem é a base da moral ocidental, o homem se fazendo Deus, sem qualquer dúvida, faria coro à multidão e aplaudiria a desumanização do messias. Bem, olhando pro Brasil atual, parece que tudo se inverteu e desumanizar é o projeto do Messias escolhido e aplaudido. Mas que fique claro: ao humano cabe tudo, até mesmo o ato de desumanizar. Em último grau, nossa existência é dialética, não havendo em nós qualquer natureza banhada em pureza. Nem plenamente bons, nem plenamente maus, mas, sinalizando “o estar de cada coisa, filtrando os seus graus”, humanos, demasiado humanos.


Diego Neves é músico integrante da banda Legrand, designer gráfico, sociólogo em formação e aspirante a escritor.


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