Sobre as pregas de uma roupa que já não cai bem

Fosse porque o dia era quente ou porque a rotina estivesse cheia do que fazer; pode ser também que, naquele dia, só mais uma onda de melancolia habitual tivesse subido à superfície da consciência para apontar como ele dançava fora do ritmo. Carros imprimindo cadência nas vias da cidade, pessoas marcando o fluxo das calçadas, mas ele estava fora. Se movia com os olhos só suficientemente abertos, lembrando de coisas do tempo de criança, na época das brincadeiras, quando ainda era pequeno e as casas eram enormes.

Subiu a Halfeld enquanto escutava música. Parou em uma barraca de ambulantes para comprar caqui e algumas maçãs. Ainda sentia o ciático fisgar desde a última crise, e, mesmo que não mancasse, a perna esquerda parecia um pouco encurtada – pisava tanto para dentro que o bico do sapato estava desgastado. Tudo isso, no entanto, fazia nenhuma diferença no fim de tarde; como ele, eram centenas de outros e outras pensando e escutando músicas em fones. Era único, autêntico, mas inteiramente desinteressante para os todos, da mesma forma que o mundo era.

Foi até a altura da primeira ou segunda galeria quando virou à esquerda e foi costurando o centro da cidade como se faz em Buenos Aires. Ao mesmo tempo que caminhava, pensava que aquela arquitetura era um tesouro, porque fazia com que no centro todas as coisas parecessem próximas. Tornava muito mais fácil caminhar a pé para resolver as coisas do que usar um carro. Na verdade, usar um carro no centro de Juiz de Fora era algo que se tornava cada vez mais desaconselhado. Um centro cartografado por aquelas passagens secretas e expostas fazem a cidade. Nos tempos em que a capital ainda ficava no Rio de Janeiro, a cidade era imbatível em charm, em público, em artes – e a impressão que tinha é de que isso acontecia em mezaninos de galerias, quase como naquelas reuniões clandestinas em que Merleau-Ponty, Sartre e Camus escreveram, beberam e brigaram juntos.

Teve fome e decidiu que queria comer. Se lembrou de ter lido uma crônica estúpida sobre alguém que teria comido numa padaria com a boca anestesiada. O conteúdo da peça era péssimo: curta, vulgar, cheia de adjetivos e com pouco assunto – que significava, a um leitor mais experiente, que na verdade aquele autor não tinha absolutamente ideia nenhuma e apenas vomitou no papel meia dúzia de palavras para cumprir os prazos de uma revista. Como estava amargo, se lembrou com desprezo da anedota, mas com carinho das padarias. Tomaria um bom café e comeria alguma coisa sem glúten.

Na medida em que escurecia, ventava um pouco, esfriava rápido. Não levava casaco, apenas a blusa que usava no corpo. Ainda via movimento de pessoas aqui e ali, mas elas iam deixando de aparecer, e a rua parecia mais vazia. Com exceção dos pontos de ônibus, que ficavam cheios com a sobrecarga populacional que deveria deixar a região comercial e voltar para as bordas, o anoitecer se parecia bastante com o início da manhã. E isso fazia com que ele pensasse que as coisas se parecem além da conta na vida.

Por mais de uma vez, já havia se questionado sobre isso. Foi casado uma vez, amasiado mais uma e, nos últimos meses, vivia entre algumas aventuras. Não tinha filhos ou pets que lhe pediam atenção; a família era de outro estado. Vivia só para trabalhar melhor e estudar melhor: materializar cada um daqueles fatores que se pensa em conquistar quando se tem dezesseis anos para possuir a felicidade plena. Verdade que não era infeliz, mas tampouco era bento. Se sentia majoritariamente sóbrio, eventualmente alegre. As mulheres, os empregos, os gozares, eram muito parecidos ou iguais. Se debateu por algum período pensando que a culpa fosse do marasmo provinciano de Juiz de Fora, a cidade em que nada acontece; mas quando passou uma temporada em Porto Alegre, ele viu que por lá as coisas eram idênticas. As repetições não são dos espaços, são das pessoas. Nosso herói banal e quase rabugento vivia de repetir suas intensidades e sabia disso, mas começava a se incomodar.

Deixar de repetir é, de alguma forma, romper. Com um caso, com um trabalho, com um partido, com memórias, com fantasias. Não existe sujeito sem esses tiques e essas verrugas que formam a máscara do existir. Romper toda vez que alguma ideia abusada ou alguém chega perto demais de incomodar, também é repetição. Alguns nós não são cortáveis; são afrouxáveis e daí se largam sozinhos. São como o laço no tênis que se solta sozinho quando o cadarço é ensebado, ou como o barrinho que suja a bainha da calça, mas que, quando seca, vira pó. A vida é assim. Ele não sabia disso, mas intuía alguma coisa.

Sentou-se na mesa mais afastada do café, onde pediu capuccino e dois folhados de queijo. Comia e mexia no celular, desapercebido da vida. Não gostava de café ou de chá quentes demais, era preciso esfriar um pouco. Bebia devagar para que tudo aquilo parecesse um ritual desses que se transformam em meme sobre liberdade ou solidão. Estava sozinho e se sentia feliz, até que sentiu que uma mão lhe tocava os ombros. Não gostava que lhe encostassem enquanto conversava e não esperava quem fosse. As mãos logo se soltaram dos ombros e deslizaram pela mesa, puxando a cadeira onde se sentou uma mulher. Ele conhecia aquela moça; ou, pelo menos, já havia conhecido, um dia.

Alguns anos antes, teve uma amizade próxima com certa artista local. Não existem muitos aquarelistas no século XXI, e talvez daí tenha nascido o encanto. Não se ama, seja no coito ou de forma inibida em sua finalidade, alguém que não seja fascinante, e a amiga era admirável no que fazia. Questões políticas e familiares fizeram com que ela se mudasse de cidade e fosse viver mais no interior. Não tinha ouvido muito dizer por onde andava a ex-companhia de olhares e de leituras. Uma vez, se se lembrava bem, chegou a procurar e descobriu que tinha se casado ou tentava se casar, algo assim. Nunca teve muita estima por si mesma, e a isso ainda, se somava uma espécie de esoterismo new age neurótico. Seria melhor deixar o tempo passar, e os dois talvez se encontrassem numa livraria, na fila do cinema, ou coisas assim. Nada aconteceu como o planejado. Nunca mais se viram até aquele momento, em que a mulher sentava diante dele e dos croissants.

Amenidades banais que perfazem o pacto da civilidade. “Como vai? Que surpresa.”; “Não esperava nunca que te veria aqui!”; “Você continua o mesmo.”; “Viajei para a Bahia.”; “Fulana abriu um pet shop.”; “Me casei.”; “Me separei.”; “Tem feito muito calor em Juiz de Fora.”; “O café está frio, vou pedir uma coca zero.”; “Se importa se eu acender um carlton?”

Estava diante de uma mulher que conheceu, mas não a conhecia. A voz parecia a mesma; a cor do cabelo, a altura, a forma de se vestir e a miopia que sempre teve; mas, ao mesmo tempo, era outra pessoa. Tornar-se outra pessoa pode ser algo bom em alguns contextos, mas não ali. Ela estava oca, acuada; parecia sentir medo. Era o duplo do que já foi. Mesmo nome, idade equivalente, documentos iguais – mas outra, ao mesmo tempo. Um estampido como um apito soou no ouvido do homem, que ouvia sem escutar. Naquele momento, teve dúvidas se era o mesmo e sobre o quanto poderia ter mudado, por sua vez. É certo que a rotina era um pouco estressante naquele período, mas lia mais, criava mais, fotografava, escrevia críticas. Seria possível que ele também passasse a ela uma imagem tão desconexa de si mesmo?

Sentiu vertigem.

Voltou a si quando ela apoiou os cotovelos na mesa e chorou. Na verdade, não sabia bem se a mulher já estava fazendo isso há muito tempo ou se tinha começado naquele momento. O choro concentrou a atenção e ele ouviu. Estava casada com um traficante, tinha dúvidas se estava grávida, desistiu da aquarela e estava pensando em procurar emprego em alguma papelaria ou no shopping. Tudo dito de uma vez. Depois, o silêncio. Enquanto ela enxugava o canto dos olhos com a ponta dos dedos sem esmalte, ele teve outra vertigem.

Ela acendeu mais um cigarro. Ficaram em silêncio por alguns minutos, e pode ser que, naquele tempo, ela também estivesse medindo como o amigo estava mudado: era mais seco, era mais curto, era mais desarmado.

O relógio marcava quase 20h, e ele precisava ir embora. Trocaram novamente os contatos de celular. A conta ficou em dezessete e setenta e cinco. Saíram juntos e descobriram que estavam indo pela mesma direção, o que fez com que caminhassem um do lado do outro por uma ou duas quadras. Ela precisava atravessar, e ele continuou o mesmo caminho. Se despediram amigavelmente, como sempre faziam, mas depois da distância ele parou pra olhar para trás. Sobre o ombro esquerdo, sentia ver pela fresta de algum tecido do tempo o que tinha ficado perdido. Sofreu pela amiga sofrida, e daí caminhou in memorian mais um pouco pelas ruas do centro.

Era noite. Fazia mais frio do que antes. Quem visse de longe, perceberia um homem cabisbaixo, com a testa franzida e a monocelha contraída. Desajeitadamente, a sacola biodegradável (daquelas verdes e fedidas) se chocava ora com a batata da perna, ora com o joelho, enquanto ele continuava caminhando. Pensava sem pensar em como, às vezes, o tempo veste mal. Não usava a cabeça para fazer isso; o corpo inteiro consentia naquela epifania do existir. Grilheta do mesmo calendário: todo o mundo se movia sem poder andar para trás.

Embora fosse contador de profissão, ele também tinha seus rompantes de poeta. Naquela noite, não conseguiu deixar de pensar sobre as pregas do tempo que devia ostentar também; mas, acima disso, precisava responder para si quem era de verdade e quando.

Sentiu vertigem.

Comeu caqui.

Dormiu bem mal aquela noite.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo



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