Cinética-Silêncio

São uma da manhã de uma quarta-feira. Quinta-feira. Eu me permiti uma taça de vinho que se tornaram seis (aqui eu troquei esse número algumas vezes por não ter certeza, mas talvez tenham sido mais. A garrafa estava pra cima da metade e não acabou, mas é que a gente aqui toma fundinho de taça). Eu cozinhei pra mim. Vi o piloto de uma série enquanto jantava, e revi enquanto recolhia as coisas porque achei que não tinha apreendido o suficiente. Em algum momento do meu estado ébrio, me percebi dançando no meio da cozinha. Um riff na cabeça, de uma das músicas que tocam no episódio. Trinta segundos repetidos vinte vezes, foram dez minutos rodando distraída com os meus pensamentos.

Eu me orgulho de ter uma memória impecável, e tendo a me gabar disso pras pessoas no meu entorno. Durante os dez minutos rodopiando na cozinha, apesar de sozinha, eu não estava realmente só, e foi no momento que percebi a solidão é que realmente saí do devaneio. Sabe, ter uma memória impecável é excelente, mas atiça saudades que às vezes a gente até esquece que tinha. 

A data era vinte e oito de janeiro, dois anos atrás, pleno pré-carnaval. Foi a primeira vez na vida que eu dancei sem música. Eu, que canto desde que me entendo por gente, sempre botei som nos meus passos, e quando você me pegou pela mão naquele dia, confesso que me falhou o ritmo. Já tínhamos dançado antes, exatos vinte e oito dias antes, mas naquela vez tinha sido provocação minha. “Cajuína”, a música, escolha tua. Dessa vez, porém, só tinha chuva. E a gente debaixo dela. Um burburinho das pessoas que se escondiam por debaixo das poucas barracas espalhadas pela praça, o teu braço em torno da minha cintura e eu sem saber muito o que fazer. Eu sempre fui desafiante, apesar de me render fácil. Sempre confiei na música, no ritmo, na melodia, e não na pessoa que dançava comigo.

Pois bem, desta vez, nada de música. Nem um murmúrio sequer. Apenas a pressão do teu corpo contra o meu e a energia cinética que vinha dessa união. De alguma forma, a rádio que tocava em cada cabeça era a mesma. Nossa segunda dança foi orgânica e silenciosa, como flor que brota. Demos início a uma tradição, ali, que perdurou por muitos meses, até a sua partida.

Hoje, em minha embriaguez, fui levada de volta às nossas danças silenciosas. Em meio a tanto ruído entre nós nos últimos tempos, não tivemos oportunidade de fazer isso de novo. De toda forma, tenho na memória a sensação de estar nos teus braços, de te ter nos meus braços, e de confiarmos no universo guiando nossos passos. Por vezes, eles acabavam em tombos ou trombadas em móveis, mas mesmo assim, era divertido. Tudo era divertido. E que bom que tem voltado a ser.


5 de Junho de 2018


Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz, atua e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora na Trama e escritora nas horas vagas.



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