RASTRO E RESQUÍCIOS

Convivi bem próximo à minha avó materna por um breve período de tempo, num momento delicado em que seu quadro de Alzheimer se agravava. Tenho a percepção de que esses dias/meses foram tão importantes para minha formação como artista quanto as leituras, os estudos, e as visitas à exposições. Me serviram de alerta para nossa frágil condição humana/biológica.

Foi um tapa na cara, ou um beliscão nas costas, chamando atenção para o quão fugaz era a vida ou, ao menos, a nossa maneira de percebê-la e senti-la.  Nossa memória e lembranças por um fio. A organização das ideias por um fio. Nosso senso moral e de justiça por um triz de se perder e, internamente, a percepção de que há pouco que se possa fazer em relação a isso. De pouco adiante se apegar. A vida passa como uma bala e conduz por caminhos inesperados.

Foi nesse momento de minha vida, por volta de 2007/2008, que a arte passou a fazer mais sentido – ou apenas se fez mais presente e necessária. Se firmou a necessidade por registrar, de forma sensível e subjetiva, experiências, sonhos, momentos, pessoas, fatos, objetos, ambientes, ideias, atmosferas, … A sensação de que minha vida – ou, ao menos, minha memória – iria se perder, assim como acontecia com minha avó, aguçou o meu olhar para o mundo e essa minha vontade de registrá-lo, de apresentar minhas pegadas e o rastro dessa minha caminhada.

A primeira série de trabalhos em que me envolvi, nessa época, se chamava Úlcera Nervosa, em que eu pintava com fogo. Acredito que, de certo modo, queria queimar tudo que já havia feito até então e que me parecesse irrelevante à minha história, além de criar uma pintura multissensorial, sinestésica.

Além do Alzheimer, minha avó estava quase cega, e muito do que eu fazia, fazia pensando nela, levando em conta seu estado e suas condições para perceber o mundo e, por que não, para perceber uma obra de arte. Daí a vontade de fazer uma pintura tátil, com cheiro, que pudesse impregnar o ambiente em que estava com mais do que sua presença visual.

Passei, então, a tomar notas em cadernos, mesclando desenhos, textos e algumas tentativas inocentes de poesia. Nada grandioso ou muito significativo. Apenas registros de uma vida.

O primeiro desses cadernos enchi com desenhos de meus familiares dormindo. Minha esposa e filha, minha avó, minha madrinha, meu irmão. Quem desse bobeira de adormecer perto de mim enquanto eu seguisse acordado acabava indo parar no caderno.

Gradualmente, passei a escrever algumas coisas junto aos desenhos. Escritos rápidos, de pensamentos e lembranças tão fugazes que sequer mereciam ser feitos de maneira que alguém pudesse ou conseguisse lê-los posteriormente. Eram realmente escritos para ninguém ler.

Percebo que, a partir daí, opto por sempre manter algo velado em relação a certos aspectos de meu trabalho. Vivemos em um tempo onde tudo se expõe, onde cada parcela de vivência se revela, e onde pouco sobra para a intimidade, o mistério e a introspecção.

Todos esses três pontos são cruciais a minha pintura.

Sobre a intimidade, acho que já deixei claro o quão atraído me tornei pelo e pelos que me cercam. Por meu arredor;

Sobre o mistério, ele é o ponto em que a arte transcende ou subverte o óbvio da existência. Um lugar de descobertas e surpresas, um momento de encanto e encontros. A ativação de recordações e a suspensão do tempo. A conexão entre situações/mundos distantes com o infinito de possibilidades, entre elas, a de tornar nossa obra uma espécie de ruína de nossa memória e existência. Cada desenho e pintura não detém nossa vida em sua totalidade, mas são, sim, fragmentos potentes, capazes de carregar resquícios do que somos/fomos/seremos;

Sobre a introspecção, ela é um recorte espaço-temporal onde/quando a prática artística se aproxima do sonho, da espiritualidade e de qualquer demais esfera de nosso universo imaginário. A realidade objetiva se impõe, mas pode a todo momento ser submersa por nossa subjetividade.

Quando vemos animais, faces humanas ou quaisquer outras figurações em meio as nuvens, exploramos muito mais o nosso campo de referências interno do que, objetivamente, as características da nuvem. Ela se torna uma fagulha e inicia a combustão imaginária; e o combustível é algo que carregamos internamente e que abastecemos por conta própria. Quanto mais atentos ficamos em relação a nossa percepção interior, mais enchemos nosso tanque para alimentar tal chama.

Vejo que, da mesma forma que meus garranchos escondem os significados das palavras em “escritos para ninguém ler”, as camadas de tinta grossa escondem certas sutilezas nas pinturas, embrutecendo-as. Muitas vezes, beiro a tentação de abandonar uma tela, tentando me dar por satisfeito com uma pintura mais rápida, espontânea e com menos intervenções; mas acontece que não consigo. Diferente do desenho, onde aceito e abraço a síntese, com a pintura, sinto que ela deve contar uma história, e que essa história é sempre um pouco mais longa. Precisa adquirir marcas. As marcas do tempo. Marcas que o tempo grava em qualquer superfície viva, como rugas, respingos, arranhões, furos, sujeiras, cicatrizes, …

A condição da pintura é tão importante quanto a imagem apresentada. Não faz diferença, para mim, se pinto o retrato de um amigo ou um arbusto no mato: meu desejo e esforço são sempre para que a soma entre imagem e aquela crosta de tinta na superfície da tela resulte em algo indescritível, incomunicável.

Apelo aos sentidos por não me bastar a razão. Existe algo que foge ao entendimento e às palavras – a não ser pela poesia, mas de poeta tenho pouco -, e é aí que busco e me encontro no desenho e na pintura… desde o encanto pelo fogo, à perplexidade de corpos em queda rumo a morte, passando por objetos banais, corpos varridos pelo vento e retratos de pessoas que me instigam. Busco com e através da arte aquilo que não atinjo em palavras.

Digo com e através porque percebo como algo importante fazer com que a pintura não somente registre determinada experiência, mas que se torne uma experiência em si. Encaro o ato de pintar como um exercício de exploração e de descobertas. Enquanto mera execução técnica, com receitas a se seguir, não gera interesse para mim. Mais do que um passo a passo exato a se seguir e um resultado específico a se alcançar, a pintura é território para tentativas e buscas, campo para se desafiar, tendo em vista somente o desconhecido.

Mesmo que parta de uma referência objetiva como uma fotografia, por exemplo, os caminhos a seguir em cada tela são sempre diversos e são batalhas em si. Toda pintura se torna complexa em alguma etapa. É preciso uma boa dose de coragem para, como já disse, não abandonar alguns trabalhos pelo meio do caminho, mas também alguma sensatez para saber que não são todas as batalhas que se vence.

Muitas das escolhas feitas pra se iniciar um desenho, pintura, ou série, assim como a maneira de abordá-los, surgem de forma inconsciente e até mesmo aleatória em determinados casos, mas não é sempre assim. Consigo mapear os rastros de influências em minha produção, e os considero fundamentais para meu processo de desenvolvimento e aprendizado.

As primeiras pinturas a chamar minha atenção ao ponto de me emocionar – como apenas música havia feito até então – foram as de Van Gogh. Seus quadros modificaram minha maneira de olhar para o mundo, principalmente para a natureza.

Me lembro de quando olhei pela primeira vez para a copa de uma árvore oscilando junto ao vento e de pensar em suas pinturas, e também na daqueles influenciados por ele, como Anita Malfatti. Era o tipo de cena com a qual já havia tido contato inúmeras vezes, mas logo percebi que a diferença não estava na cena, e sim em mim, na forma como eu olhava. Dali em diante, não conseguia observar mais a mata em movimento sem pensar em pintura.

Dois fatores que mais me chamavam atenção para Van Gogh: a maneira de construir seus quadros através dos empastes de tinta, e a forma como era capaz de adicionar/transmitir uma sensação de movimento àquilo que é estático, à imagem pictórica. A dinâmica de suas pinceladas é tão intensa e ordenada que, a meu ver, descontrói a imagem do artista insano, febril, produzindo somente sob os efeitos da paixão. Fica claro que era muito mais do que isso. Existe uma ciência e profundo entendimento por trás de sua obra, pouco explorados pelos que escolhem enfatizar o aspecto romântico de sua existência conturbada. Sei que seu domínio sobre a matéria pictórica, aliado à dinâmica com que constroi suas pinturas, fizeram de seu legado algo singular – e se tornaram, para mim, referências fundamentais, características a perseguir em meu trabalho.

Movimento e pincelada. Explosão e pincelada. Ordem e pincelada. Caos e pincelada. Acredito que a pintura deva abrir brecha para todo tipo de acontecimento e intervenções do acaso. Muitas vezes, ele se impõe; muitas vezes, é preciso ser domado.

O jogo mais interessante é quando se estabelece um diálogo entre o controle e o descontrole no processo… quando controlado demais, parece rígido, sem fluidez; mas, se descontrolado demais, apenas uma miscelânea.

Existe um equilíbrio entre o acaso e a vontade, entre o caos e o desejo, o controle, e me parece que os melhores trabalhos revelam esse equilíbrio, mesmo que de forma obtusa. Poderia citar mais uma série de artistas influentes para mim, mas vou me ater aqueles que considero marcos, e aos quais consulto regularmente:

Iberê Camargo, com sua exploração matérica da pintura, assim como de seu universo subjetivo;

Alberto Giacometti, com seus retratos ímpares e seu processo de rasura gráfico-pictórico, em que construção e desconstrução se somam ao que chamamos de criação;

Frank Auerbach e Lucian Freud, com seus retratos matéricos e pela entrega à pintura;

Dos antigos: Rembrandt, Franz Hals, Goya, Velázquez.

Dos modernos: Pissarro, Cézanne, e um achado tardio, mas muito significativo para mim: Vuillard, com suas cenas domésticas, singelas e seu tratamento sintético.

Outro achado tardio importante foi Joan Riera Ferrari, com suas impactantes pinturas de rochedos marinhos.

Pra concluir, preciso abordar a importância das trilhas e caminhadas no mato em minha produção recente. Percebo uma sequência de fatores, mas, provavelmente, o mais significativo seja que o momento dessa prática se tornou também a principal hora de reflexão sobre meu trabalho, sobre as escolhas que faço e sobre o processo como um todo. É a etapa que considero como digestão.

Parando pra pensar no processo desde a origem até a conclusão de cada pintura, poderia separá-lo, resumi-lo em três etapas: ingestão, digestão e regurgitação.

A ingestão seria aquele momento em que quaisquer vivências e experiências tenham determinado impacto sobre nossa percepção e que despertem um tipo de sensação de deslocamento em relação a realidade. Uma interrupção no fluxo de sentimentos e pensamentos corriqueiros e a ativação de um estado anacrônico e, algumas vezes, sinestésico. Um emaranhado de sensações e ideias mesclando passado, presente e futuro, criando uma rede de conexões subjetivas.

Nessa fase, separo imagens de referência e monto um arquivo do que pretendo pintar posteriormente. Fotos roubadas de família, recortes de jornal, frames de filmes, folhas e mais folhas rabiscadas nos cadernos de esboço… tudo entra nesse baú de guardados. São a matéria que alimenta minha produção.

A digestão seria a pausa, ou suspensão das atividades, do fazer, das escolhas, para apenas pensar e refletir a respeito do que foi feito, ou do que pretendo fazer, e até hoje não encontrei situação melhor do que as caminhadas no mato pra isso. Silêncio e solitude ideais.

Chegamos então ao regurgitar. O transbordar do excedente seria aquilo que compõe e constrói cada desenho e pintura. É o momento de resgate daquelas imagens selecionadas e o empenho para reapresenta-las, recriá-las no universo da pintura.

Meu trabalho se torna, então, um esforço para subverter tais imagens com os traços de minhas experiências e, quem sabe, deixar ali algum rastro, resquícios de minha existência.

SEM TÍTULO, 2011
Nanquim sobre papel
36.5 x 30.5cm

P.IVO, 2012
Óleo sobre tela
RETRATO ROUBADO IV, 2017
Óleo sobre tela
24 x 41cm

SEM TÍTULO, 2017
Óleo sobre madeira

Guilherme Melich é natural do Rio de Janeiro, é pintor, desenhista, gravurista e professor. Desde novo demonstra interesse pelo desenho, mas até concluir o ensino médio se recusa a estudar e iniciar sua formação artística. Ingressa no curso de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2004, onde o contato com a História da Arte e o apoio de professores/artistas como Leila Danziger, Priscilla de Paula, Afonso Rodrigues e Alex Badaró são fundamentais para sua formação. A partir de 2008, já formado, passa a oferecer cursos livres de desenho e pintura e mantém sua produção em um pequeno ateliê.


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