A SIMPLICIDADE EM ‘SOVGADARI’

Assisti a este curto documentário às quase 7h da manhã, quando desisti novamente de dormir. O hábito de prorrogar o sono, dessa vez, foi justificado pela morte de um gato que coabitava minha casa há pouco mais de um mês, até ontem à noite, quando foi atropelado. Desde a hora em que ele morreu, o clima na casa foi de luto. Aquele clima em que o silêncio entrega o que todos estão pensando. Passei a noite, inevitavelmente, lembrando do Torresmo – o gato – e pensando no que devo falar com o dono dele, que trabalha embarcado e retorna justamente hoje, no dia seguinte à morte do bicho. Eles estavam juntos há oito anos. Se, com um mês de convivência, eu já me sinto triste pela falta do bichano, imagino como ele vai ficar.

Por isso, ao desistir de dormir, procurei algum documentário que me revelasse algum sofrimento alheio. Mazelas da vida que, talvez, pudessem amenizar a importância da morte recente do animal. E que fosse um documentário curto. Esse tem 23 minutos, o que veio a calhar.

O documentário se passa na Geórgia, gravado em 2017. Acompanha um mercador, um comerciante, que vai até um vilarejo onde vivem agricultores de batatas, onde ele as compra, ou troca por itens comuns, usados e novos, que carrega consigo, e depois revende as batatas no mercado da cidade. O documentário não tem narração. Tem alguns diálogos do mercador com a população local e poucos trechos de entrevistas. A maior parte do tempo, são apenas imagens cruas, de ambientação e exposição de como é a vida no vilarejo. A simplicidade é explícita desde o início. Muito provavelmente, as batatas são a base alimentar daquela população – além de serem, como demonstrado no filme, sua principal moeda de troca.

Em um momento, um aldeão pergunta ao mercador quanto custa um par de botas usadas que ele expõe em seu caminhão, pelo qual ele responde: “25kg de batata”. “Muito barato”, responde o aldeão. Tudo tinha seu preço em quilos de batatas.

Porém, duas cenas chamam mais a atenção. A primeira delas é quando uma anciã tenta convencer o mercador a lhe dar algo de presente, ou lhe vender por 1 lári – equivalente a pouco menos de R$2,00. Ele lhe diz, impiedosamente, que não pode, que custa 5kg de batata. Ela suplica, dizendo que é velha, sozinha, não tem batatas, mas que precisava do produto, revelando, no fim, que se tratava de um simples ralador. A cena ganha tons de dramaticidade, em parte, pela face rugosa e os poucos dentes da senhora que, em sua humildade, tenta, sem sucesso, conquistar um ato de benevolência do mercador. E por outro lado, revela quão escasso é o acesso a itens básicos por parte daqueles aldeões, que encaram admirados objetos usados dos mais comuns.

A outra cena que chama a atenção foi uma tentativa de entrevista com uma criança, dentro de sua casa. Tentativa, porque a criança não responde à única pergunta feita. A impressão que dá é que ela não sabe a resposta ou, talvez, nem sequer tenha pensado muito sobre isso. A cena se prolonga, por quase um minuto, com a criança em primeiro plano, nítida e timidamente, se esforçando para pensar na resposta da pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”.

Era isso que eu buscava encontrar hoje. Tento, todos os dias, me lembrar do quão pouco realmente se precisa pra viver e, durante minha vida, pretendo reafirmar isso quantas vezes for necessário. Obviamente que ninguém deveria passar por situações de escassez de alimentos, ou ter pouco acesso à itens básicos para ter uma vida minimamente digna. Mas eu não diria, de forma alguma, que aquelas pessoas plantando, colhendo e mercantilizando batatas como única fonte de renda são pessoas infelizes. Pelo contrário. Embora alguém dotado de mais privilégios possa perceber tudo que lhes falta, ainda é possível ver, em quase todos aqueles aldeões e aldeãs, sorrisos e bom humor. A criança, embora não saiba o que quer ser, parece estar feliz sendo o que é, junto às outras crianças que ali vivem.

Alguém poderia afirmar que a felicidade é uma condição da puerilidade, ou da ignorância. Eu diria que a felicidade é uma condição da própria vida. Não é preciso atravessar o oceano, nem mesmo sair do Brasil, pra ver realidades parecidas com a dos aldeões georgianos, ou até piores. Mas é possível encontrar, em todos esses lugares, pessoas que se contentam com pouco e que abstraem desse pouco o essencial pra se viver.

“O Mercador” é do catálogo da Netflix, dirigido por Tamta Gabrichidze. Demorei mais pra refletir e escrever esse texto do que pra ver o documentário. Mas ainda não consigo deixar de pensar no gato.


Dougg Ribeiro é, sendo genérico, artista e comunicador. Com um pé em cada lado, se atreve a pisar em todo canto. Usa palavras, sons e imagens para tentar impactar o mundo ao seu redor.


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