MINGAU, O SELVAGEM (OU SOBRE A MORTE DE UMA MÃE)

Segundo as anotações na folhinha atrás da geladeira, neste domingo se contariam seiscentos e quarenta e dois dias desde que ele se separou e Rita se mudou para São Paulo; trezentos e dezenove dias desde que começou a fazer academia; e sessenta e oito que estava assinando um novo serviço de streaming onde conseguia assistir filmes gregos e ucranianos. Esse tipo de anotação se tornou crônico depois do início da pandemia, embora ele nunca tenha realmente superado a morte do cachorro naquela sexta-feira, dia quatorze de agosto de noventa e nove, nem cada um dos seus dois términos de relacionamento. É curioso, porque aparentemente não havia motivos para isso.

Ricardo foi o terceiro filho de uma família, temporão. Quando foi parido, o irmão do meio já tinha doze anos, o casamento dos pais cumpria conveniências católicas, e não era segredo para ninguém do condomínio que o pai sustentava outra família em Bento Ribeiro. As coisas não aconteciam escondidas, ficavam à mostra. Sua mãe não suportava mais os homens que desde nova lhe demandavam uma boceta fresca, mesmo tendo um pau mal limpo. Atendia aos caprichos do marido até que descobriu a segunda família, cuja mulher era mais nova; foi quando rompeu com as coisas da cama e do banho, cuidando apenas da mesa. Não significava que ela o odiasse, pelo contrário, havia dias em que sentia o amar mais por não ter que desejá-lo. Se não faltasse aquilo de que precisavam ela e os filhos, o marido poderia apagar seu fogo onde quisesse. Nessa altura da vida, estava mais preocupada com a salvação do que com o pecado.

Como a cama da mãe estivesse vaga desde cedo por quase metade dos dias da semana, Ricardo podia se deitar ali para dormir. Na casa de dois cômodos ele dormiria no chão, junto com os irmãos no quarto, se não estivesse deitado com D. Ruth. A mãe fazia gosto de que o filho caçula lhe fizesse companhia, e essa foi a primeira coisa que ele aprendeu a contar, ainda usando apenas dos dedos das mãos como referência: quantos dias meu pai ficava fora? Quantos ele estava em casa? Aos poucos, o pai foi dormindo menos na cama e mais no sofá, o que significava mais espaço, e a mãe sempre dormia abraçadinha com ele, mantendo as pernas do pequeno entre as suas coxas, de um jeito que ele ficasse quentinho e não pegasse friagem. As coisas eram como eram, mas se algum dia o pai desejava dormir na cama, seja por que as costas doíam ou porque tinha brigado com a outra, nesse dia a contagem falhava e Ricardo não dormia a noite inteira. Alguma coisa estava fora do lugar, isso era assustador.

Na adolescência, adquiriu um hábito estranho: ele colecionava grampos que encontrava pelo chão, na rua. Para quem não procura, encontrar essas coisas pelas calçadas é um detalhe lotérico, mas ele procurava, e quando topava com um fazia sempre do mesmo modo. Se abaixava, tomava nas mãos, soprava e limpava o grampo batendo três vezes na lateral direita da calça. Limpo e conferido, Ricardo abria a carteira e fixava seu pequeno achado no bolso dos cartões. Perto dos dezenove anos, chegou a ter trinta e sete deles consigo.

Viveu dois relacionamentos longos antes do início do fim do mundo. O primeiro foi uma amiga de colégio, loira, e que usava muitos coques. Como esses penteados precisam de grampos, foi assim que a conheceu e depois, também foi assim que encerrou sua coleção. Se podia ter uma mulher que possuía caixas dessas coisas, não tinha necessidade de pegar do chão. Jogou tudo fora. O namoro não durou mais porque Ricardo não conseguia viajar fora do período de férias, e além disso ficava analisando as letras das músicas que Isabela escutava. O eu lírico fazia com que desse gargalhadas do forró universitário, mas ela só queria se esfregar com ele enquanto dançava, só que analisar e dançar ao mesmo tempo era impossível. Terminaram durante uma exposição agropecuária. Ela saiu com as amigas, ele foi dormir na casa da mãe. 

Depois começou a fazer faculdade, e foi aí que conheceu a Rita. Foram seis anos de convivência quase diária. Moraram juntos, na casa dele. A mãe não aprovou nenhum dos namoros, mas ele era independente. O pai já tinha morrido, de um câncer de próstata. Com a Rita, tudo parecia melhor; até os nomes combinavam. O término, aqui, veio por uma questão mais pragmática: nessa altura, Ricardo entendia que não se analisa e dança ao mesmo tempo. Ela foi aprovada em um concurso federal em São Paulo, e ele não podia ir porque não teriam como levar o gato, e o gato precisava de cuidados. Desde então, vivia sozinho. Parcialmente sozinho, na verdade; tinha o Mingau.

Uma coisa curiosa era que, cada vez mais, ele demorava para fazer as atividades cotidianas. Ir ao banheiro era especificamente demorado. Eu não sei se mencionei, mas Ricardo era contador, o que permitia que trabalhasse de casa, sempre de pijamas da cintura para baixo e com camisa de botões da cintura para cima. Quando bebia café com leite ou cappuccino, sentia vontade de ir ao banheiro. Entrava, trancava a porta, desabotoava a camisa, tirava-a, pendurava no registro d’água sobre a pia. Sentava na tampa do vaso ainda de calças, para esquentar, e então tirava também as calças e cagava pelado. Sempre lia alguma coisa nesses momentos e o quanto podia, só começava mesmo a se aliviar quando terminava um parágrafo ou uma página inteira, o que podia variar conforme o dia. Isso lhe dava algum prazer estranho. Terminado o esforço, lia mais, até encontrar uma página que terminasse em ponto final. Normalmente, Ricardo ia ao banheiro duas vezes por dia e levava, em cada uma delas, pelo menos uma hora e meia.

Afora os filmes gregos e ucranianos, a contabilidade de um supermercado grande, alguns impostos de renda e, finalmente, degustar literatura no vaso sanitário, seu gozo era controlar a folhinha contando dias e alimentando Mingau. Não ia na rua, pedia comida por aplicativos, lavava cada embalagem com álcool quando chegavam. Não se sentia exatamente feliz, mas estava tudo sob controle. Sentia saudades da Rita, mais que da Isabela; e da mãe, mais do que da Rita.

Acontece que a vida é curiosa às vezes. Era domingo, e o Ricardo precisou descer até a garagem do prédio para colocar o lixo no cesto de coleta seletiva. Desceu e deixou a casa como sempre fazia, mas não combinou com o pet. Fazia um sol gostoso no vão de sua vaga, o que acabou roubando mais alguns minutos do tempo daquela saída, algo além do habitual. Mingau era neurótico. Subiu no aparador, se debruçou na porta e espreguiçou arranhando a folhinha, que não resistiu aos sete quilos do felino gordo e caiu no chão. Dali para diante foi uma carnificina de papel. Quando abriu a porta de volta, viu o papel espalhado, o gato sentado no sofá lambendo a própria virilha e suas marcações cuidadosamente transformadas em papel picado. Naquela tarde de domingo, Ricardo teve uma vertigem. Estranhamente culpado, ele tinha a impressão de que o Mingau havia picotado sua mãe.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *