NOTA SOBRE OS PASSADOS QUE NUNCA EXISTIRAM

A busca pelo retorno a um passado ideal é recorrente quando ampliamos a lente e observamos o homem na História. É curioso perceber, no entanto, que o passado ideal vem atribuído de uma crise na experiência com o presente que, dada as ressalvas, visualizamos na perspectiva de ideal de Baudelaire segundo Walter Benjamin. Explico. Nos poemas de Charles Baudelaire, Benjamin buscou compreender a noção de ideal presente na sua atividade poética pois dizia de uma experiência não mais possível entre os homens do século XIX. Assim, “Baudelaire figura com o ideal algo que está de antemão perdido” (GATTI, 2008, p. 128). Essa rememoração do passado em Baudelaire não indica fuga do presente, mas diz, em linhas gerais, de uma condição de experimentação do tempo em que escreve. Nesse sentido, sua relação com o ideal está marcada por condições adversas.

Temos lido e visto com frequência a busca de um passado ideal na narrativa de grupos reacionários e, isso, aparece como uma forma de justificar sua militância: pelo retorno da família tradicional, pela aplicação de direitos humanos apenas para “humanos direitos” e, pasmem, assisto atônita o pedido de retorno ao patriarcado dentro de alguns textos doutrinários sobre os ideais dentro do cristianismo. Ao fim e ao cabo, pedem um pelo “mundo ideal” que seus avós viveram, por exemplo. Alinhado com esse discurso, a ideia de que, em algum momento, ideologias corromperam o mundo e fizeram com que, alguns grupos minoritários, ganhassem hegemonia cultural com o apoio, sobretudo, da mídia. Ainda, o ideal vem convertido de valores que dignificam parte da população, tal como a criação do homem dentro do que chamam de masculinidade bíblica, a rigor, ele é a personificação do que estrutura e protege uma família, é o que garante a renda, é o símbolo maior e superior de autoridade e está no topo da hierarquia dentro do núcleo familiar e, muitos complementaristas[1] defenderão que ele é também o topo da hierarquia na vida cívica e, portanto, mulheres não podem assumir cargos de liderança, tal como a presidência da república[2]. Assim, o retorno a um passado ideal sugere um mundo pacífico em que cada um cumpria sua função sem nenhum tipo de ruptura ou protesto. Mais, a ruptura e protesto são consequências de um mundo que foi corrompido por um mal invisível que atua para destruir todo esse ideal que sustenta o mesmo discurso.

No entanto, esse passado nunca existiu. O ideal que buscam serve para atrair indivíduos numa tentativa de chamá-los a defesa de absurdos em nome de uma guerra travada para o legado dos bons costumes. Quando grupos reacionários usam de uma linguagem que mistura valores tão profundos tal como honra e dignidade em vista de um mundo que, segundo estes, foi “corrompido” pelo mimimi, acionam ideais distribuídos pela memória coletiva e, isso, seria suficiente para suprimir a História. Tratamos, portanto, da construção de uma memória coletiva que busca na historinha bonita do casamento dos avós, justificar que o feminismo de nada serve, por exemplo. Os efeitos dessa memória micro centrada e aplicada como regra geral é visto nas distorções e ataques que são feitos cotidianamente aos movimentos sociais e, dentro de comunidades cristãs, há uma investida de peso no enfrentamento de um feminismo que coloca em risco a constituição da família. Sabemos que isso não é verdade, que a luta feminista parte dos ideais de liberdade e emancipação da mulher, assim, seu direito de escolha é um dos pontos centrais, no entanto, há um distorção da mensagem que aparece como uma antítese ao que, de fato, significa: dizem que, no feminismo, a mulher não é livre.

É muito mais fácil criar um estado ilusório sobre algo que discordo para, assim, o enfrentar. É como se o narrador decidisse atacar sua própria história, ele já sabe todo o enredo por estar numa posição privilegiada. Ou seja, é muito mais fácil criar uma mentira e construir uma crítica em cima dela. O ideal sairá vitorioso, no entanto, continuará sendo uma mentira. O que se fundamenta sobre uma mentira, além de ser desonesto intelectualmente, está fadado ao delírio. E, é sobre esse estado de delírio, que surgem as ponderações quanto a supressão dos direitos de determinados grupos; é sobre esse estado de delírio que a República de Gilead surge. Fazendo um gancho com a nossa introdução sobre ideal, cabe dizer que o retorno a um passado ilusório diz, ainda, de uma relação com as concepções de experimentação plena que, no entanto, ocorre em um estado de crise da própria experiência. Aplicando isso na nossa reflexão, cabe dizer que a busca de um passado que não existiu ocorre em decorrência dos impulsos experimentados no presente, assim, os que inflamam esse discurso nada mais são motivados do que pela cólera, pelo ódio contido em denúncias que podem colocar em cheque a forma com que operam na vida, a rigor, não querem deixar de surrar suas companheiras, não querem deixar de exercer autoridade inquestionável dentro de seus lares, não querem deixar que o amor floresça em relações homoafetivas que fogem da configuração que consideram ideal, não querem deixar de fazer piadas racistas no trabalho e demais esferas, não querem deixar de ser homofóbicos enquanto pregam chamando isso de liberdade religiosa, não querem deixar de cumprirem suas agendas contrárias as políticas sanitárias contra covid 19 por necessitarem do oxigênio vindo dos views, enfim. O passado ideal que pedem de forma inflamada pelo retorno, existe apenas para perpetuação de violências que sempre foram silenciadas. Protestar é subverter uma condição de hegemonia que age em favor da violência, assim, protestarei até o último fôlego que me restar.


[1] grupo que acredita numa crença doutrinária chamada “complementarismo” que, em resumo, crê que homem e mulher foram criados com papéis de gênero distintos, assim, o homem tem a função de liderança e, a mulher, de auxiliar.  

[2] Para mais detalhes, ver: https://www.desiringgod.org/articles/why-a-woman-shouldnt-run-for-vice-president-but-wise-people-may-still-vote-for-her


REFERÊNCIAS

GATTI, Luciano Ferreira. O ideal de Baudelaire por Walter Benjamin. Trans/Form/Ação, São Paulo, p. 127-142, 2008.


Gyovana Machado é cristã, formada no Seminário Rhema Brasil, graduanda em História pela UFJF, bolsista no LAHES, interessada nas grandes áreas de teologia, política e feminismo.


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