A (des)função da arte 

Por diversas vezes me pego acreditando que o melhor das datas comemorativas é pensar nelas. É como incluir-se pelo limite do ficcional, ou até aonde alcança nossa imaginação. Claro que precisamos contar uma história sobre nós mesmos, sobre a origem das coisas, estabelecer um ponto a partir do qual podemos içar as nossas amarras para poder partir. Mesmo os maiores navegadores e aventureiros, saem na certeza de voltar para contar os grandes feitos. 

Não disponho de elementos suficientes para afirmar, mas tenho me convencido de que é a nossa relação com o tempo que determina nosso modo de ser no mundo. Saber lidar com o tempo é e deveria ser nosso maior aprendizado existencial, pois quanto mais sabemos lidar com os sentidos desta estranha impermanência acontecida por cada um, mais suportaremos suas implicações.   

A questão de fundo não é (quase bordão) “viver o momento”, “o agora”. Aproveitar a vida e seus instantes porque podemos morrer a qualquer momento. A questão é compreender o quanto somos responsáveis pela nossa vida. Não temos como pendurá-la em um cabide, dispensando nossa existência dos momentos pesados e ou “intermináveis”. Não temos como agarrar um momento que potencializa nosso ser, eternizando o êxtase da satisfação. Não temos como encurtar a necessária espera e nem comprimir tempos que se arrastam deixando cicatrizes enormes. Estar melancólico, triste, saudoso, entediado ou angustiado, desentranha-se como disposição afetiva que informa nosso ser, diz como estamos. Senti-las implicam que a nossa corporeidade não se desenha enquanto maquinaria, mas sensível a tudo aquilo que é diferente de nós (que não é a gente mesmo). 

Eis a máxima: aprender a habitar os êxtases, deixando-se tocar pelos sentidos da existência que se aprofunda no mundo, sem permanecer em um dos afetos, entrincheirando-se à sua tonalidade.  Quando passamos a sentir o mundo apenas a partir de um afeto, os sentidos do tempo são arrastados pelas suas nuances, autonomizando um dos seus aspectos, implicando nosso modo de ser no mundo. 

Viver é acontecer-se e a acontecência mais adequada aos sentidos do mundo é aquela que compõe. Compor não é aceitar as determinações, mas compreender sua existência como implicada pela clareira que mostra e esconde, estende e retrai, é e ainda-não. 

Acredito, por conta disso, que algumas pessoas compõem com o mundo, se colocam de tal modo que parecem atender a uma espécie de destinação. É como se ouvissem um clamor próprio e habitassem o mundo em uma proximidade poética. Criam um modo de vida incapaz de provocar o que existe, encantando o tempo para que a crueza dos dias seja menos estúpida. O poeta (e o artista) é um encantador do tempo, sabe acolher o passado, o presente e o futuro, abertos em suas inteirezas, dispondo-se ouvindo a voz da sua própria condição. “Encantar o tempo, é isso que devemos fazer a todo instante, laçar a vida e ir segurando no exato limite que ela, ao ir se soltando, não nos deixe com a sensação de que não somos nada”. 

Quanto mais encantamos o tempo, mais contamos histórias, pois somente as contamos porque, de alguma forma, nos sobramos no tempo. É como se permanecêssemos nas pequenas coisas, por alguns instantes e pudéssemos narrar uma história sobre nós mesmos.   

Saber ler sem a pressa dos “alfabetizados” que devoram informações; ler como quem compreende menos a palavra e mais o dizer; demorar-se e ao esticar-se no espaço-tempo, experimentar a completude de uma vida singular. Da altura da minha percepção enviesada, desejo encantar o tempo para entregar a cada um dos outros uma história menos difícil de ser vivida. 


Marli Silveira (Marli Teresinha Silva da Silveira) é natural de Santa Cruz do Sul, Mestre em Filosofia (UFSM), Doutora em Educação (UPF) e atualmente realiza Estágio Pós-Doutoral em Letras na Universidade de Santa Cruz do Sul. Poeta e escritora, com vários livros publicados. Autora de artigos e trabalhos acadêmicos. Organizadora e autora de obras literárias, biografias e obras coletivas. Foi secretária e coordenadora de Cultura de Vera Cruz (2005 a 2008, 2014 a 2015), Coordenadora de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura de Santa Cruz do Sul (2009-2012). Sua dedicação à cultura tornou seu trabalho reconhecido, recebendo prêmios por iniciativas e projetos que têm como foco o desenvolvimento cultural, a democratização do acesso e a promoção da diversidade cultural e literária, entre os quais o Prêmio VIVALEITURA 2016 (MinC, MEC e OEI) e o Prêmio Trajetórias Culturais — Mestra Sirley Amaro na Categoria Diversidade Linguística, Livro, Leitura e Literatura 2021. Integra a Casa do Poeta Rio-Grandense (CAPORI), a Associação Santa-cruzense de Escritores, a Academia Santa-cruzense de Letras e a Associação Gaúcha de Escritores/ AGES). Em 2017 foi eleita Patrona da Feira do Livro de Vera Cruz-RS, em 2019 escolhida Patrona da Feira do Livro de Gramado Xavier-RS. Marli Silveira estreou na Editora Bestiário / Class em 2021 com o livro Quantos dias cabem na noite, sendo que em 2022, também pela Bestiário, lançou, em parceria com Lilian Cordeiro, o livro Singularidade Arredia – ensaio sobre identidade e corpo feminino. 



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