Adélia é o seu nome. Minha tia paterna. Não é fácil dimensionar a força que essa mulher guerreira e batalhadora exerceu e exerce sobre a minha vida e a de toda minha família. Enfermeira, foi a primeira de uma família camponesa e pobre a conquistar um diploma de curso superior, no início dos anos 1980. Saiu da roça para servir aos patrões fazendeiros em Ipanema, no Rio de Janeiro, em plenos anos 1960. Teve a coragem e a dignidade de romper relações com a “sinhá” que a humilhou para buscar, sem rumo, outro emprego que pudesse mantê-la na desigual “Cidade Maravilhosa”. Continuou trabalhando como doméstica, durante anos, em outra “casa de família”, para depois garantir o sustento como camareira num hotel internacional. Tudo isso sem largar o objetivo de estudar. Terminou o antigo ginásio, fez exame admissional para o 2o. Grau e conseguiu bolsa para cursar enfermagem numa faculdade particular. Formada, prestou concurso público federal, sendo logo convocada para assumir o cargo no Hospital da Lagoa e no HCE. Naquela época, o mais difícil era concluir uma faculdade.  

 
Tão logo alcançando a sua estabilidade financeira, tornou-se “muro de arrimo” de toda família. O salário que recebia poderia lhe garantir uma vida com muito mais conforto do que tinha, mas a sua generosidade transbordante sempre fez com que uma boa fatia de seus rendimentos fosse gasta com a família. Solteira, dedicou-se aos sobrinhos, à irmã (Irene), que lutou com sérios e dispendiosos tratamentos cardíacos, e aos filhos de uma amiga que morava com ela em Botafogo, e que foram acolhidos como os filhos que a vida lhe deu. Mãe de todas e todos, viveu e vive a vida para cuidar do outro no sentido mais fraterno que essa palavra pode ter: foi babá, doméstica, camareira e enfermeira, profissões que exigem o dom do amor e da dedicação constante ao outro.  
 
Minhas memórias de Natal na roça não existem sem ela. Em dezembro, chegava de malas prontas, repleta de presentes, brinquedos, balas, biscoitos de muitas variedades e enfeites de Natal. Fartura pouca, bobagem! Meu 4o. bimestre na escola já insinuava sua presença. Já podia sentir a boa ansiedade me invadir nos últimos meses do ano. Por volta da segunda semana de dezembro, eu e meus irmãos subíamos no alto do morro e aguardávamos o ônibus Belvedere dobrar a curva da estrada, na expectativa de vê-lo parar na encruzilhada logo em frente. A certeza da parada nunca tínhamos, já que não podíamos contar com a informação instantânea que a tecnologia hoje nos traz. No início dos anos 1990, a comunicação na roça era precaríssima: não tínhamos telefone fixo, não tínhamos energia elétrica, muito menos sonhávamos com um “trem” esquisito e alienígena chamado celular. Coração saindo pela boca, sentíamos pelo ronco do motor do ônibus que ele, infelizmente, não ia parar. Decepção arrebatadora. Fazer o quê?! Mas a espera continuava… Até que, na semana seguinte, o “busão” finalmente parava… À parada do motor respondíamos com a descida disparada pelo morro, rumo ao seu encontro. Abraços, beijos, malas e sacolas se misturavam. Cheirinho de tia Adélia no ar, estávamos certos de que o clima natalino havia começado. 

Tia Adélia passava Natal e Ano Novo lá no sítio. Sua presença significava mudança de rotina: trabalhava ao ritmo das músicas de seu ídolo, o rei Roberto Carlos, introduziu o hábito de montarmos árvore de Natal com galho de goiabeira, limpava e enfeitava com flores a nossa capelinha de Nossa Senhora Aparecida, e realizava as famosas caminhadas matinais pelas estradas de terra esburacadas. Depois dos quarenta, tornou-se amante da atividade física: aprendeu a nadar, nadou na Argentina, começou a correr, etc. Também gostava de visitar os amigos da redondeza. Era uma forma de manter vivo o passado e relembrar as origens mineiras, que nunca se perderam em meio às “carioquices”. Do bom e velho costume mineiro, manteve o herdado de seu avô: rezar o terço. Nas noites de Natal e Ano Novo, sempre fez questão de rezá-lo conosco, com a família reunida na sala. E ainda mantemos essa tradição viva, mesmo nas ocasiões em que não podemos contar com a sua presença. 

 
Por mais de três décadas, morou numa casa localizada na Vila Santa Clara, na rua São Clemente, em Botafogo (RJ). Há poucos metros da Casa de Rui Barbosa e repleto de casarões antigos, o endereço me fascinava pela inigualável combinação do antigo com o moderno. Como não me lembrar das férias escolares no janeiro carioca? Da minha primeira ida a uma praia, na Praia Vermelha, do bondinho, do pão-de-açúcar, daquele exuberante céu azul, que se confunde com a cor de seus olhos?  

 
Sempre entusiasta dos meus estudos, guardo carinhosamente as fotos que tirou das minhas formaturas (desde o ensino fundamental). Fotos estas acompanhadas das carinhosas e elogiosas dedicatórias de incentivo, escritas com aquela letra linda e estilosa, que inspirou minha irmã e, depois, a mim. Por ela e por todas as mulheres guerreiras da minha família, eu insisto, persisto e resisto nessa prazerosa e árdua caminhada. Com ela, aprendi que os estudos nos emancipam e nos dão um pouco de dignidade nesse país dominado por uma “elite do atraso”, que, diuturnamente, impõe barreiras infinitas para que o pobre não tenha voz e vez. Continuo pobre, mas orgulhoso de minhas origens e das grandiosas pequenas coisas que conquistei com meus estudos. Com ela também aprendi a respeitar, valorizar e exercer com responsabilidade a missão de um funcionário público. Aposentada na compulsória (ou “expulsória”, como ela ironicamente diz), dedicou-se com louvor, afinco e amor a essa missão. 

A vida lhe foi subtraindo amizades antigas. A aposentadoria lhe tirou a rotina do trabalho diário, que exerceu durante anos e anos, restando-lhe os cuidados com o lar. Lar, novo lar. Não mais em Botafogo, mas na Taquara, onde comprou seu primeiro imóvel. Um apartamento onde vive a sétima década de sua vida, repleta de novos desafios, dilemas e incertezas. Fase de ressignificações, redimensionamentos, nostalgias e mergulhos profundos em um passado remoto, cada vez mais presente em sua mente. Passado vivido e revivido em suas imaginações e reimaginações. Memórias fugidias, passarão, mas vivenciadas com sede de liberdade, passarinhos. Voos livres, mas de rumos incertos, como a vida é. Reflexão que ela soube tão bem expressar numa simples tampa de caixa de remédio – talvez acessando recônditos lugares de sua consciência/inconsciência: “Pássaros lindos, para onde vão?”

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Sérgio Augusto Vicente

Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Possui experiência em pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. Entre os anos 2022 e 2023, integrou a equipe curatorial de três grandes exposições que reabriram o Museu Mariano Procópio integralmente aos públicos, com novas abordagens historiográficas e narrativas expográficas. São elas: 1. Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação; 2. Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio; 3. Villa Ferreira Lage (ambientação da residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX). Desde 2020, atua como escritor da revista Trama Bodoque: arte, cultura e criatividade (ISSN 2764-0639) e, a partir de 2022, também passou a atuar como membro do conselho editorial do referido periódico semanal. 


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3 Comentários

  1. Regina da Cruz Alvarenga

    Me emocionei! Grande mulher é Adélia, de luta, de amor! Amei o seguinte: Memórias fugidias, passarão, mas vivenciadas com sede de liberdade, passarinhos.
    Uma intextualidade com o “Poeminha do contra”, de Mário Quintana), me pareceu. A estrutura do período é poética. A história narrada por Sérgio, cheia de sentimentos, certamente encantam o leitor!

  2. Linda trama poética que a prosa conduziu através dos caminhos de sua memória, tal qual Proust com suas Madeleines. Quão bom é o tempo passado, para quem viveu a infância com a ingenuidade de um néscio, e sem as responsabilidades de um douto. Lindo texto, digno da homenageada, e de quem o produziu.

  3. Sérgio Augusto Vicente

    Agradeço profundamente os comentários dos queridos amigos Regina Alvarenga e Sérgio Soares. É uma honra enorme a leitura e as considerações de vocês. Forte abraço!

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