Sobre a escrivaninha uma lista de coisas a fazer. Tarefas do dia a dia realizadas com afinco e amor à família. Dona de casa, desde sempre, era zelosa no cuidado dos filhos e do marido. Um homem de ideias retrógradas, de cabelos divididos ao meio e manias que perturbavam. Seguro, pra não dizer pão duro, quase sempre achava um absurdo o preço da manteiga e regulava as compras da casa. Ela, de uma paciência invejável e um equilíbrio de monge, não brigava. Fazia pesquisas de preço, aproveitava as promoções, reaproveitava tudo o quanto era possível e aprendeu a costurar para diminuir os gastos com lojas de roupas. 

Quando o marido chegava em casa, cansado de mais um dia de trabalho, ela o recebia com os olhos brilhando de saudade, com o jantar à mesa e os filhos penteados e silenciosos. O silêncio era imperativo na presença do marido. E ela sabia bem como silenciar sua voz, suas necessidades, seus desejos e seus filhos. Fora assim durante toda a sua vida.Desde pequena sentia a frieza de seu pai e de seus irmãos mais velhos, via sua mãe em silêncio obsequioso. Aprendera, acostumara-se. Era assim que tinha de ser. 

Hoje é seu aniversário. Setenta anos. Acordou no raiar do dia, como sempre. Fez o café, pôs a mesa e aguardou em silêncio o burburinho do amanhecer em sua casa. Porém, o silêncio era maior do que o de costume. Afinal, seus filhos já eram homens e não mais viviam ali. O marido morrera aos 50 anos, de causa desconhecida. Sentou-se à mesa, serviu-se do café doce e abriu um álbum de fotografias que lhe trouxe à mente as recordações da vida. Seus olhos lacrimejaram de saudade. Dessa saudade que a gente só sente quando é dia de aniversário. Sabia que não tinha sido tão feliz assim como fingira toda a vida. 

Sozinha, sentia falta dos filhos, do marido arrogante, das trouxas de roupas para lavar, das louças empilhadas depois do almoço de domingo e do silêncio que precisava fazer para não incomodar aquele com quem se casara tão jovem. Antes, o silêncio era uma ordem que ela obedecia sem questionar e o fazia porque entendia que era assim mesmo que tinha de ser. Hoje, o silêncio não era mais imperativo, mas era a única coisa que restara. E como doía não poder fazer barulho para logo em seguida silenciá-lo. 

Levantou-se, tirou a mesa, aguardou que a campainha tocasse. Porém, nem os filhos, nem os netos romperam aquela manhã. Suspirou longamente e decidiu viver seu silêncio em outro canto. Saiu do prédio sem fazer barulho e sem ser notada. Nada levou, deixou tudo como estava. Tomou um táxi e partiu. 

À tardinha, os filhos vieram para uma visita cordial de aniversário, trazendo seus filhos e esposas, como faziam todos os anos. Quando adentraram o apartamento, minuciosamente arrumado, com cheiro de jasmim, não foram recebidos por Ismália. Procuraram e se preocuparam, então. Ninguém a vira saindo do prédio, ninguém escutara nada durante todo o dia. Ninguém dera por sua falta, afinal de contas, era ela tão silenciosa! Só se ouvia, muito de vez em quando, o chiar da panela de pressão. 

Em pouco tempo puseram-se a procurá-la nos hospitais, nos asilos, nas casas de parentes, de vizinhos, nas esquinas e nada. Como resposta apenas o silêncio. Depois de horas indo e vindo, contornando os quarteirões, e já preparados para acionar a polícia e registrar seu desaparecimento, avistaram Ismália assentada na beira de uma ponte, sobre o mar, olhando para o céu fixamente como que em uma torre, conversando com a lua. Não houve tempo. Todos à sua procura paralisaram-se diante da cena que passava pelas retinas incrédulas de cada um.  

Ismália enlouqueceu em silêncio e em silêncio expirou. Seus filhos verteram lágrimas e sem terem o que fazer, também se silenciaram. 

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Joseani Adalemar Netto é natural de Santos Dumont, Minas Gerais. Formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Educação Infantil, Especialista em Educação Contemporânea pelo IF-Sudeste, campus Santos Dumont e Mestre em Letras – ProfLetras UFJF. Leciona Língua Portuguesa e suas Literaturas na Rede Municipal e Particular de Santos Dumont. É membro efetivo da Sociedade Brasileira dos Poetas Adravianistas (SBPA), Coordenadora do Projeto de Leitura LeiturAMA-SD, membro atuante da Ação em Movimentos Artísticos de Santos Dumont (AMA-SD), fundadora e coordenadora da Academia Brasileira de Autores Aldravianistas Infantojuvenil – SD (ABRAAI-SD), membro correspondente da Academia Portuguesa de Ex-Libris (APEL). É contadora de histórias, palestra sobre Educação e Literatura, ministra oficinas e atividades culturais voltadas para o incentivo à leitura e à escrita tanto para estudantes quanto para a formação de professores na cidade de Santos Dumont e região. Tem seus textos publicados em antologias literárias como o Livro IV, V, VI, VII e VIII e IX das Aldravias; Antologia Juiz de Fora ao Luar; Antologia Múltiplas Palavras, UBT (JF), e-book Cronistas da Quarentena (2021), Livro foto-poema pela Lei Aldir Blanc. Possui capítulos em livros pedagógicos voltados para o Letramento Línguistico e Literário, artigos publicados em jornais e revistas voltados para a Educação. Já prefaciou livros e quarta capa para vários outros escritores e poetas. Trabalha como revisora linguística em várias publicações. É colaboradora externa no Projeto Propostas Pedagógicas para o Ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, atuando como co-orientadora dos bolsistas de Letras na construção de sequências didáticas, do IF-Sudeste, campus Juiz de Fora e atua também no projeto de pesquisa Performances do Narrador, UFMG, com o olhar para as obras de Conceição Evaristo. Participa de forma atuante em oficinas, palestras, cursos, saraus e atividades afins. Possui certificados e medalhas de Mérito Cultural por sua atuação como fomentadora da cultura local e da região, oferecidas pela SBPA, Lesma Poesia, Rotaract, Interact, Câmara Municipal de Santos Dumont, dentre outros. 


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Um comentário

  1. Sua prosa sempre engajada, e lúcida, é capaz de derrubar o mais tosco dos homens. Engraçado ver como a menina-moça que conheci tornou-se uma mulher tão forte e aguerrida. Seus textos, sua história são isso. E que bom que é assim minha cara amiga!😍😍😍😍

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