A praça é grande, parece aumentada neste dia de sol. Transbordante. De gente e de energia. Cada folha, cada pedacinho de grama parece constatar isso. Tudo é vibrante e, ainda assim, emana uma estranha calmaria, como se o tempo, embevecido com a cena que criara, tivesse decidido deixar de seguir seu caminho e, também ele, quisesse aproveitar a tarde. O vento rendeu-se ao tempo e juntos coagularam o fluxo da vida. 

No início, são apenas passos na grama, botas pesadas cujo som é abafado pela terra. Talvez ninguém perceba as pequenas dores que vão causando nas flores miúdas, nos insetos que rastejam sem pressa, alheios à suspensão do tempo e à cumplicidade do vento.  

São botas que marcham, em obediência cega ao ritmo ancestral. Acoplados às botas, corpos. Corpos de homens. Vão rasgando marcas na terra, como se de um corpo feminino se tratasse. Sulcos de terra vermelha como tantas outras marcas que provocaram na carne de mulheres reais. As suas próprias mulheres e outras, das quais fizeram uso. Objetos descartáveis a serviço de homens vorazes. 

Trazem as mãos ocupadas com armas pesadas, os homens. Armas prontas para o disparo. As mãos são grossas e não sabem acariciar peles que vibram. Apenas sentem prazer ao toque frio do metal. Excitam-se com o poder que sentem. Gigantes em escala humana. As expressões olham o vazio adiante, sempre adiante, com olhos ausentes. 

A terra vibra em agonia insuspeita, reverberando fundo e mais fundo, alastrando um grito calado pelo horror. Os homens marcham como demônios. Desarticulados do mundo, as passadas firmes e lentas, e as pessoas olham como se de um filme se tratasse. Ou uma excentridade. Uma criança entorta o olhar e vê a arma de outro ângulo. Pensa que é uma brincadeira. E eles seguem. Esmagam o miolo delicado da flor – um dedo; torcem o caule da erva que se espalha – o mamilo de um seio quente. Pisoteiam o cigarro jogado ao chão, que queima lentamente a terra – a vulva que se oferece ao carinho. 

A excitação cresce. Os homens marcham, indiferentes a tudo, ao sol, ao vento e à paralisação do tempo. E, na praça, as pessoas entorpecidas permanecem na infância dos seus próprios pensamentos, inconscientes do perigo. Há muito perderam a capacidade de reconhecê-lo. Há muito acreditam que a sombra recolheu-se, vencida. A tensão é quase palpável; porém, pouco se distingue da algazarra das crianças. Os latidos dos cães, antes misturados aos gritos dos pequenos, começam, pouco a pouco, a diminuir de volume. Os cães levantam as orelhas, apuram o olfato. Eles sabem. 

E mais alguém. 

Uma mulher observa a cena e, como os cães, fareja a ameaça. Ela, uma dessas mulheres violadas por seu homem. Ela e seu grito mudo. 

Ao sinal invisível, os homens começam a disparar. Descarregam as armas, como uma ejaculação coletiva, fruto de um gozo inominável. Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. As pessoas vão caindo, flor a flor. E os cães. Algum uiva escondido, desejando, talvez, não ter sobrevivido. Outros correm, para cairem sobre a grama, adiante. Ou serem chutados junto a um banco, onde outros corpos já desabaram. 

Os homens disparam. As pessoas são nada. Morrem sem entender o que se abateu sobre elas. A mulher que observa está dentro de um carro, à espera. Não sabe bem de quê. Da decisão sempre adiada? do gesto que acenderá a ignição e colocará o carro em fuga?  

De súbito, percebe o que significa o seu cotidiano. Os homens estão a chegar perto de si. E num gesto de louco sacrifício, ou de repentina lucidez, abre a porta, avança em passos leves, encara os homens que chegam perto e mais perto. Deita-se na terra, entregue, para que seja feito de forma explícita, tudo o que é feito sob a luz dos olhos fechados. 

Começa a ventar. 


Ana Gilbert nasceu no Rio de Janeiro. É psicoterapeuta, pesquisadora e fotógrafa. O seu envolvimento com imagens, palavras e imaginação levou-a a trabalhar na intersecção entre fotografia e literatura. Tem como exercício criativo constante a transformação de palavra em fotografia e fotografia em palavra, em parceria com escritores e fotógrafos. 

Depois de muitos anos de publicações acadêmicas, decidiu dar mais atenção à escrita ficcional.  

Como pesquisadora, é autora de Vértice do impensável: um estudo de narrativas em síndrome de Down(2012) e colaboradora nos livros Activist film festivals: towards a political subject (2016), Para onde vai o tempo? Relatos e ficções à volta de contextos de vulnerabilidade (2020) e Art and Activism in the age of systemic crisis: aesthetic resilience (2021). 

Na esfera ficcional, teve contos publicados nas coletâneas Antologia Minimalista (2020), Crocitar de Lenore(2021), Prêmio Off Flip (2021), Contos Minimalistas (2021) e Contágios – Contos & Crónicas ! Coletivo Mapas do Confinamento (2022). 

Como fotógrafa, apresentou seu trabalho em exposições individuais e coletivas. 

Colabora no projecto Fotografar Palavras desde 2017. 

Integra o colectivo da editora Minimalista desde a sua fundação, e administra o blog Sutilezas do Olhar

ana_gilbet


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