Exposição arte e maternagem

Curadoria: Marta Mencarini e Tatiana Reis

Recebemos com satisfação o convite da revista Trama Bodoque, para organizarmos a curadoria dessa exposição. Para tanto, convidamos 21 artistas-mães fecundas em propostas plurais entre pintura, escultura, intervenção urbana, bordado, fotografia e performance que provocam questionamentos, incômodos e lançam mão da escrita de si, como campo fértil para operar deslocamentos subjetivos, fissuras e apontamentos importantes sobre as maternidades e suas existências. 

Fundamos a coletiva Arte e Maternagem (AeM) em 2020, imersas ao acontecimento materno, pela prática do fazer-saber localizado mãe-artista. Imbuídas de desejos e de quereres em aproximarmos corpos-mães-artistas brasileiras, desenvolvemos um mapeamento-cartográfico afetivo, sob uma metodologia de pesquisa-poética-política que denominamos Poética do Enquanto. 

Produzir arte e pesquisa criando gente faz-se em fragmentos, partes díspares que demoram a se tornar conjunto completo, obra. Compreendemos a Poética do Enquanto como ações-estratégias-exaustão que se fazem presentes nas madrugadas, ‘no corre’, enquanto se lava a louça, ‘deixando a peteca cair’. Tais processos fragmentados constituem-se transpostos pelas dinâmicas da maternagem, manejos familiares, exigências públicas e privadas; e apontam a uma denúncia sistêmica-capitalista-patriarcal incidente sobre os corpos-mães. 

A construção patriarcal sobre o dispositivo materno recai de forma simbólica sobre o signo mulher: mulheres-mães, mulheres que não são mães, meninas, mulheres cis, mulheres tran. Como nos ensina Simone de Beauvoir, o jogo cultural patriarcal de construção social impõe aos corpos-fêmeas humanas uma estranha sensação de desvantagem na constituição das alteridades femininas. Ao tornar-se mulher, torna-se também o Outro-fêmea-mulher objetificada, domesticada e sexualizada. 

Silvia Federici nos alerta de que a cultura patriarcal, elaborada pela perspectiva masculina, cria uma distinção entre o trabalho produtivo, voltado ao espaço público e aos privilégios masculinos, e o trabalho reprodutivo, exercido no espaço doméstico, invisibilizado, não remunerado e realizado como se e fosse demonstração de amor e afeto. 

Entendemos a importância de lançarmos um olhar constante e analítico para os mecanismos que operam em narrativas hegemônicas sobre nossos corpos, existências e maternagens. Versamos assim subversivamente os modos patriarcais que, historicamente utilizaram a maternidade como ferramenta opressiva e controladora (RICH, 2019)  sobre as mulheres, os quais, na contemporaneidade, a muito custo,  vêm sendo combatidos  por árduo trabalho histórico dos movimentos feministas e por ativistas na luta pelos lugares de fala das mulheres e reconhecimentos interseccionais,  travando a conscientização e enfrentamento sobre a invisibilidade do trabalho de cuidado, o trabalho doméstico não remunerado e a manutenção familiar exercida  em grande parte por mulheres. 

Neste sentido,  dedicamo-nos a investigar as pesquisas-poéticas de artistas mães brasileiras a fim de abrir passagem para a diversidade de narrativas e alargar a visibilidade das experiência-envolvimento com a própria maternidade/maternagem em suas reverberações subjetivas e criações artísticas.  

Partimos da criação expográfica e cartográfica concebida em três eixos curatoriais que se interconectam e se contaminam, são eles: Corpo-Mãe [Escrita de si];  Ninho [Manutenção da vida] e Domesticidade [Resistências e Violências].

Tendo em vista a urgência do reconhecimento do trabalho do cuidado, acompanhamos alguns esforços por mudanças, como o projeto de lei 2757/2021, que reconhece o cuidado materno como trabalho e garante aposentadoria para mulheres mães de 60 anos que não conseguiram se aposentar por outros meios, além de contabilizar o tempo de licença maternidade para fins de aposentadoria.   

No campo das artes, é possível observar um importante esforço e coragem na construção de narrativas de resistência e combate que desestabilizam a romantização da maternidade.  As artistas que trazemos para a exposição acionam o poder do coletivo, utilizam-se do deslocamento do doméstico para espaços públicos, partem de narrativas íntimas para mobilizar denúncias e desejos de mudanças. 

Os espaços expositivos, residências artísticas e curadorias começam a apresentar interesse ao tema da maternagem.  Nos últimos anos, por exemplo, pudemos acompanhar exposições coletivas e individuais sobre o tema. Coletivos de artistas também surgiram para corroborar com a visibilização e reconhecimento das questões aqui levantadas. Alguns como Coletivo Matriz, Coletiva Mãe Artista, Rama – Rede Afetiva de Mães Artistas fortalecem a criação de uma ampla rede de artistas em profícuo movimento. Além disso, há uma caminhada em paralelo aos  movimentos feministas e ativistas em prol da implementação de políticas públicas e leis que resguardem a saúde e a integridade das mulheres mães e assumam o trabalho do cuidado materno como trabalho essencial para a manutenção da vida e da sociedade como um todo, digno de ser reconhecido e bem remunerado.  


*O mapeamento do AeM segue aberto para novas inscrições, em nosso perfil no instagram há um link para o formulário. Convidamos a todes para conhecer nosso trabalho e contribuir com nossa pesquisa. @artematernagem

Notas:

 1- FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.

2-  BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2/ Simone de Beauvoir; tradução Sérgio Milliet, – 3 ed. Rio de Janeiro: Novas Fronteiras 2016.

3- FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. 

 4- RICH, Adrienne. Of Woman Born. Motherhood as Experience and Institution, Norton, 1976, nueva edición 1986. Nacemos de mujer. La maternidad como experiencia e institución, 2019. 

 5- Dados sobre a pesquisa podem ser visto em: https://lab.thinkolga.com/economia-do-cuidado/

 6- VÈRGES, Françoise. Um Feminismo Decolonial. São Paulo: Ubu, 2020

 7- Dados sobre a pesquisa podem ser vistos em: https://www.generonumero.media/reportagens/casas-mulheres-negras-pobreza/

8-  Projeto de lei 2757/2021 da deputada Taliria Petrone (PSOL/RJ)

O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada, 2022. Tainã Mello e Tarsila Alves.

O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada (2022), fotoperformance das artistas Tainã Mello (1986)e Tarsila Alves, abarca questões que dialogam com a morte-vida-morte, a morte simbólica da mulher que um dia foi, mas que agora mãe é proteção e alimento. 

O futuro tem gosto de areia quente e o passado tem cheiro de terra molhada, 2022. Tainã Mello e Tarsila Alves 2.

[Corpo Mãe / Escrita de Si]

Me beija, meu amor, me beija (Fernanda), Série Narrativas de Parto, 2015. Clarissa Borges. Fotografia digital sobre papel. Tamanho: 75 x 50 cm 

Na fotografia Me beija meu amor me beija, a artista Clarissa Borges (1976) nos propõe a acompanhar um trabalho de parto e adentrarmos no espaço de intimidade, mesmo em ambientes hospitalares, acessando as diversas sensações que o trabalho de parto envolve dor-prazer-sensualidade-medo.

Bruna Alcantara, Mãe Solteira, Curitiba (PR), 2018, Bordado, Colagem e Aplicação em Autorretrato e Vestido de Grávida. 43 cm x 34cm.

Bruna Alcantara, artista paranaense, também questiona o lugar puro-santificado-objetificado da mãe, ao se retratar como as madonas renascentistas, enquanto amamenta seu filho, uma criança e não um bebê. A expressão mãe solteira produzida em bordado emoldura a imagem. A artista trava críticas à narrativa hegemônica estereotipada e questiona a romantização, a objetificação e a sacralização da maternidade, concepções nas quais fortalecem o sistema patriarcal capitalista, alicerçado na perspectiva masculina, na família tradicional nuclear e na propriedade privada.

[Ninho / Manutenção da Vida]

Domingo legal, 2020. Óleo sobre Tela, 100,5 x 120,5 x 3,5 cm | Marjô Mizumoto – (Coleção particular Bruno Gioia)

Na pintura Domingo Legal, somos transportadas para uma cena ensolarada, multicolorida, ruidosa e potente. A obra da artista paulistana Marjô Mizumoto (1988) joga uma lupa contemplativa ao trivial e rotineiro,  utilizando-se de referência fotográfica e cinematográfica para produzir imagens que são como capturas de momentos de sua intimidade e das relações familiares. 

Leite para Gaia. Foto performance, 2018. Lorena D’Arc.
Leite para Gaia, 2. Foto performance, 2018. Lorena D’Arc.

Na foto performance Leite para Gaia (2018), a artista mineira Lorena D’ Arc (1964) articula as simbologias do leite e do barro, vida-morte-vida, demarcando com seu corpo a terra e a nutrindo com o leite.

[Domesticidade / Resistências e Violências]

Série Sombra de Vitória, 2020. Daniela Torrente.

Em Sombras de Vitória (2020), a artista Daniela Torrente (1976) se inspira em um fato histórico, voltado à Era Vitoriana (1837 a 1901), na Inglaterra, e a  invenção da fotografia. A curiosa solução encontrada pelos fotógrafos da época revela imagens simbólicas sobre a invisibilização do corpo-mulher-mãe. Ao trazer a referência vitoriana para seu trabalho, Daniela atualiza questões sobre a anulação da mãe e a ausência paterna.

Madre mater, 2007. Clarice Gonçalves.

A incidência do patriarcado sobre a infância de meninas é abordada na pintura Madre mater (2007), da artista brasiliense Clarice Gonçalves (1985).  Atentamos à crítica pontual da artista ao evidenciar a figura de Maria-mãe-virgem na perpetuação simbólica sobre as mulheres de castidade, obediência e pureza.

Ada Medeiros, Violeta, Fotografias do processo de cicatrização de corte cirúrgico no abdomên da mãe da artista, 2020.

Gostaríamos de citar também três artistas que também desenvolvem obras com as temáticas trazidas pela curadoria:

Sob a perspectiva particular e imigrante, a artista peruana Yanaki Herrerana cria narrativas contra coloniais abordando a maternidade e a ancestralidade. Recentemente a artista expos na mostra individual:  Nutrir florestas en el corazón  realizada na galeria Quartoamado em BH, pinturas solares e coloridas onde explora sua relação íntima e cotidiana com seu filho. 

Renata Felinto (1978) artista nascida em São Paulo mas que hoje reside no Cariri (CE)  levanta questões críticas sobre a maternidade desde sua primeira gestação. Um dos trabalhos mais importantes se chama Embalando Mateus ao som de um Hardcore (2017) e destaca o impacto que a maternidade solo teve em sua vida. Nesse trabalho Renata articulando um diálogo visual entre boletos, colagens, trabalhos infantis de seus filhos, imagens fotográficas de sua família, aciona a uma rede de memórias coletivas sobre solidão, negligências privações e exaustão feminina que recaem especialmente em mulheres negras e que ainda estão presentes.  

Abordando também questões da maternidade preta e do papel de arrimo da família, Márcia Falcão, artista carioca, cria imagens que se atravessam em conceitos populares e acadêmicos, assumindo uma construção estética multifacetada e questionadora. Sob uma narrativa contra-colonial, Falcão  desenvolve pinturas autobiográficas, onde se representa corpo dissidente, mulher negra, e também faz referência aos corpos exaustos de tantas mulheres que compartilham de questões levantadas por sua produção. 


Ficha técnica:

Coordenação: Ada Medeiros

Curadoria: Marta e Tatiana (Coletivo arte e maternagem)

Pesquisa, Revisão: Bárbara Oliveira

Texto de abertura:

Marta e Tatiana (Coletivo arte e maternagem)

Expografia e montagem: Ada Medeiros

Artistas convidadas:

Tainã Mello e Tarsila Alves

Clarissa Borges

Bruna Alcantara

Marjô Mizumoto

Lorena D’Arc

Daniela Torrente

Clarice Gonçalves

Mônica Ventura

Priscilla Buhr

Mariana Guimarães

Tatiana Reis

Jocarla Gomes

Elisa Elsie

Cecília Cavalieri

Gabriela Manfredini

Cathy Burghi

Barbara Milano

Bárbara Milano

Roberta Barros

Malu Teodoro

Ada Medeiros

Marta Mencarini