A Aura só tem Possibilidade no Presente.

Há esse objeto ali: um amontoado de folhas, uma sobre a outra, numa sequência lógica, numerada, cartesiana. Antes de estar encadernada, página é só papel. Protegida por uma capa de papelão, envolto em mais papel, ou até mesmo pano, temos ali o ápice de uma tecnologia que nunca morrerá. O livro já nasceu na era da reprodutibilidade: sua identidade já é a da cópia das palavras em escala. Os copistas criavam obras únicas, pois cada falha é uma marca de identidade no texto do outro. A impessoalidade foi impressa junto com seus tipos móveis.

Gutemberg não propôs a feitura de um objeto único: justamente seu desejo sempre foi a disseminação: uma maneira de espalhar conhecimento e encurtar o mundo. Livros são pensados e concebidos no princípio de sua reprodutibilidade técnica, citando Walter Benjamin. A aura da obra de arte é, justamente, a sua autenticidade: aquela característica que a torna única. Uma segunda capela sistina seria apenas uma segunda, ainda. A imagem pixealizada que encontramos na Internet da Noite Estrelada, do Van Gogh, ainda é só uma representação. É duro, mas é. Como diz John Berger, em Ways of Seeing, quando nos conectamos visualmente com uma obra de arte, compreendemos sua aura: a percepção de cada pincelada, da força ou leveza do pincel, dos restos de insetos que mortos ainda vivem presos nos quadros pintados ao ar livre.

O livro, essa obra já nascida sem aura, só reencontra sua existência única em um momento específico: a dedicatória.

Nessa marca quase cicatriz, que as palavras deixam na página, envoltas em significado e celebração, que a pessoalidade reencontra a obra. O autor, já morto agonizado por seu carrasco mais famoso, Roland Barthes, interessa tanto, nesse sentido, quanto a marca da caneta que autografa. As poucas linhas, desejando felicidades ou descrevendo lembranças, devolvem aquilo que jamais pensaram fazer. A aura, então, só tem possibilidade no presente.


Marcus Cardoso, historiador de formação, mestrando, músico… Faz tanta coisa que acaba não fazendo nada. E, se somos o que fazemos, então é isso: um grande nada que acredita piamente que a salvação do mundo está escondida em um haicai.


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