PELE CORTADA COM LÂMINA DE APONTADOR

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Toque piano com os vinte dedos quebrados. Por favor, não ache absurda essa sugestão. Aprendi que, independente da sua enfermidade (temporária ou definitiva), é possível fazer tudo o que precisa. Pelo menos é o que dizem. Por isso, quando eu dizia que tinha uma dor imensa na minha alma, meu pai dizia que, mesmo assim, era possível caminhar até o ponto e pegar um ônibus cheio de gente, pra ir pra escola.

O gesso, cheio de assinaturas coloridas do pessoal da sala, deixava muito evidente que o braço da Clarisse a estava impossibilitando de executar suas funções, mesmo as mais simples, como escrever. Estávamos estudando o filósofo René Descartes e tínhamos que escrever pelo menos quinze linhas sobre o que havíamos aprendido na aula anterior. A professora deixou Clarisse fazer isso oralmente. As duas foram pra fora da sala e uns cinco minutos depois voltaram.

Um pessoal, como sempre, estava esperando alguém terminar pra poder copiar. Reproduziam basicamente o mesmo conteúdo do colega, mas com palavras diferentes, claro. Eles reclamaram dizendo que ela poderia escrever com a outra mão, mesmo tendo visto ela fracassar miseravelmente nessa tentativa. Mas a maioria da sala, pelo menos aqueles que se pronunciaram, disse que deveríamos nos colocar no lugar dela.

Imagine se você estivesse com sua mão quebrada e sua letra fosse totalmente ilegível quando usasse a outra mão. Algum gênio pode dizer: “Ah…mas tem pessoas sem os dois braços que conseguem fazer pinturas lindíssimas”. Sim, tem mesmo. Também tem gente que cai do sexto andar e não morre. Quais são as chances?

Descartes dizia que não podemos confiar em nossos sentidos, pois eles nos enganam. Por exemplo: você vê alguém na esquina e pensa ser um amigo seu, aí você grita o nome dele. Quando a pessoa te olha diretamente você percebe que não é o seu amigo, é um total desconhecido. Meu Deus! Isso dá uma vergonha! Ou quando alguém te liga e pede pra você adivinhar quem é, aí você tenta reconhecer a voz que fala com você. Quando a gente erra é muito chato. A pessoa pode dizer dramaticamente: “nossa, você não reconhece minha voz, blá, blá, blá…”

Eu poderia falar sobre os outros sentidos. Mas vou direto à minha parte preferida desse tema. Este texto que você está lendo agora, você pode não estar lendo. Você pode não estar no lugar que pensa estar neste momento. Em muitos dos nossos sonhos, acreditamos estar na vida real. Por isso ficamos aliviados ao acordar e não mais estar pelado no meio da quadra da escola. Alguém aqui já teve esse pesadelo? Comigo acontecia o seguinte: Eu chego com toda a roupa, normal. Em segundos, minha camiseta sumiu. Daqui a pouco, estou só de cueca no meio do pátio. Então, de repente, estou pelado. Acho que acordar cedo pra ir pra escola só é realmente bom quando se trata de um despertar desse tipo de pesadelo. Podemos também despertar decepcionados ao descobrir que o beijo que parecia tão real, ao ponto de sentir o gosto, nunca aconteceu na realidade.

Mesmo depois de tratarmos sobre essas questões, a maioria não duvidava que a Clarisse tinha quebrado o braço de verdade. O gesso estava ali, eles assinaram nele, sentiram o cheiro da tinta das canetas e, principalmente, lembram do grito ensurdecedor que ela deu quando caiu durante o jogo. Continuavam confiando em seus sentidos.

Ninguém vê o vazio que você sente. Nem você mesmo. Não dá pra ver o vazio. Sobre pessoas que não têm empatia pelo sofrimento evidente de um maltrapilho, fedido e com fome – Como elas terão sensibilidade por um sofrimento que não dá pra captar por nenhum dos sentidos humanos?

Tem uma menina da minha sala que vai sempre de casaco pra escola. Todo mundo sabe que, embaixo das mangas, ela esconde os cortes que faz em si mesma. Alguns, eventualmente, conseguem ver os riscos da lâmina em seu braço. Uns idiotas ainda ficam zuando, dizendo ser modinha ou pra chamar a atenção. E se for? Será que não tem um motivo pelo qual ela, indiretamente, pede socorro? Ninguém se importa se ela está triste todos os dias ou se, por causa da ansiedade, tem dificuldade em todas as provas. Não veem esse sofrimento. Só vão enxergar quando ela tiver se matado. Aí vão postar discursos nas redes sociais. Bando de hipócritas! Quando o professor de Geografia, por causa de uma crise dela, “perdeu” cinco minutos da revisão para a prova, a maioria ficou reclamando.

Sabem do que mais? Se ela fosse gostosa, iam tentar ajudá-la. Mas a maioria faria isso com a intenção de pegar ela depois da consolação. Ou talvez queiram usar a desculpa da consolação pra dar uns amassos. Eu não estou falando isso aleatoriamente. Tem gente da sala que já disse que ela é feia demais pra fazer o esforço valer a pena. Bando de egoístas! Até nas atitudes aparentemente boas têm o intuito de satisfazerem apenas seus próprios desejos.

Ela tem três casacos. Pelo menos foi o que eu contei. O que ela mais usa é um preto, com a imagem da Hinata. Eu não falei o nome dela aqui porque ela pediu pra eu não dizer. Quer dizer, ela sabe que escrevi essas coisas, mas não quer que ninguém mais descubra. Ela já é ignorada por um número suficiente de pessoas. Na verdade ela nunca gostou desse lance de descobrir – me refiro às mangas da blusa. Uns babacas tentaram erguer as mangas do casaco pra zuar ela. Sempre me pergunto – Por que o ser humano tem tanto prazer diante do sofrimento alheio? Talvez, depois que ela se matar, vão se sentir culpados. Mas não porque, repentinamente, passarão a amá-la. Mas porque haverá uma cobrança dentro de cada um. Aí vão se incomodar com o peso sobre seus ombros, não com o buraco enorme que ela sempre teve no coração.

Como todo mundo sabe que ela se corta? Bom, eu também me cortava. Desde os 12 anos. Quando eu sentia a lâmina na minha carne e, em seguida, via o sangue escorrendo, era um alívio. Era bom me cortar porque assim eu me sentia mais perto da morte. Há muito tempo eu não queria estar vivo. Um dia, ouviram a menina dos casacos dizer que “a vida é muito pesada”. Alguém disse: “Só não é mais pesada do que você”. Ela então sussurrou no meu ouvido: “Acho que se eu tivesse outro corpo, teria pessoas que se importam comigo. Ou, pelo menos, fingiriam que se importam”.

Lá em casa, depois que meus pais descobriram meus mini suicídios, eles não falavam em outra coisa além de “automutilação”. Você sabia que automutilação não é só se cortar? Um dos vários outros métodos é usar um elástico como pulseira. Aí você estica e deixa ele bater no seu pulso. Faça isso continuamente, então sentirá o efeito da sequência dos golpes do elástico. Depois que meus pais descobriram, eles esconderam as facas e todos os outros objetos cortantes que haviam na casa. Aí eu fui pesquisar na internet e vi depoimentos de gente que se corta com lâmina de apontador. Perfeito! Afinal, ninguém confiscou meu material escolar. Arranquei as lâminas dos meus dois apontadores. Guardei dentro da capinha do celular.

Um dia desses, na escola, a menina dos casacos e eu nos encontramos novamente. Na verdade, só eu e a Clarisse conversávamos com ela. Fazia uns dias que eu não via cortes novos nos braços dela. Ela sempre me mostrava. Quando perguntei por que ela tinha parado, disse que a sua vó achou as lâminas que ela usava e jogou não sei onde. Foi aí que eu dei a ideia das lâminas de apontador pra ela. É só guardar na capinha do celular e já era. A propósito, foi nesse dia que ela me contou que ia se matar. Ela já tem um dia e um horário marcado. É hoje, daqui a exatamente uma hora. Não sei se é possível impedi-la. Ela está mil vezes mais escondida do que os cortes por baixo das mangas dos seus casacos. Se ninguém frustrar o plano, prepare-se para ver um monte de palavras hipócritas nas redes sociais amanhã de manhã.

Quer saber por que ela se cortava? Desculpa. Ela disse pra eu não entrar em tantos detalhes. Se você, por um acaso, estudou com ela, poderia ter perguntado antes.

Eu, ao contrário dela, era um aluno popular e, aparentemente, estava sempre feliz. Acho que eu usava o humor para, inconscientemente, esconder minha angústia. Conversava com todo mundo e todo mundo conversava comigo. Conseguia fazer as provas sem nervosismo, apesar de não ir tão bem em exatas. E, o mais importante, ninguém via os cortes que eu fazia em mim mesmo. Eu não ia de casaco quando estava calor. Não tinha nada pra esconder nos braços. Eu fazia os cortes nas pernas, a maioria na coxa direita. Quase ninguém sabia. Descobriram ontem.

Eu me enforquei na árvore que fica na frente da escola. Imagine a cena. Eu imaginei umas mil vezes antes de executar o plano. Consegui. Neste momento, eu não existo mais. Mas a imagem do meu corpo pendurado ali talvez nunca mais saia da mente dos meus colegas. Em alguns minutos, a menina dos casacos também será um cadáver. Ou não. Boa sorte pra ela! Talvez você queira que eu te fale como é aqui do outro lado. Mas não vou contar, nem que me implore desgraçadamente. Você não se importa com as pessoas que vê todo dia. Acho que, bem perto de você, ainda tem muita coisa pra observar antes de querer aprender sobre outras dimensões.


Wudson Marcos é graduado em Filosofia pela UFMS, pós-graduado em Sociologia e Orientação Educacional pela Faculdade Dom Alberto. Trabalha como professor, faz mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela UFSC. Também é poeta, autor do livro CGS, e futuro pastor excomungado, sendo que a excomunhão já foi efetivada.




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