Os anos anteriores nos tornaram fortes. Conscientes em certo ponto. Iludidos em muitos outros. Uma comunidade que conseguiu se entender em aspectos humanos e sociais. Sabíamos que os ventos poderiam mudar o rumo do barco que conduzíamos, mas ninguém nos avisou que o fascista nos esperava sentado confortavelmente na sala do lugar.
Todos ignoraram, inclusive o fascista, que se achava extremamente normal. Longe de mim ser racista, até tenho colegas gays, minha namorada sai uma vez por mês com as amigas. Quando os porcos que criávamos começaram a sumir, a seca levou a plantação embora e as contas aumentaram, as coisas mudaram. Todos tiveram que se virar, trocar horas de descanso por mais trabalho para manter a mesma condição para todos. TODOS, menos o fascista sentado na sala.
Ele nos disse que – já que tinha alguém que fizesse – iria manter-se sentado. E com todos os privilégios que alguém poderia ter, ele se manteve. Quando notamos o fascista em nossa sala ele já não tinha vergonha de violentar psicologicamente sua namorada e de falar impropérios para o companheiro negro e o casal homoafetivo. Ele já não estava mais sentado. Bradava em pé, cada vez mais acostumado ao espaço que lhe dávamos ao ignorar suas imbecilidades medievais, afim de não dar público ao absurdo.
Não eram imbecilidades, eram verdades profundas em sua mente fascista, onde só deveria existir um modelo, uma representação e uma interpretação. Continuávamos trabalhando em prol do grupo, para ele apenas alguns tinham direito aos espólios do que conseguíamos para a comunidade. Os primeiros donos [ou ladrões] da terra, os que tinham o deus cristão como verdade e os que por ventura tivessem nascido brancos, preferencialmente homens e heterossexuais. Não nos avisaram que o fascista estava dentro de casa até que ele tomou a chave e confiscou o dinheiro do caixa.
Tentamos, em estado de extrema revolta, retomar nosso poder, voltar a ter nossa propriedade e nosso dinheiro. Mas ele tinha cooptado alguns para o seu lado, dividiu nosso pensamento para conquistar nossos dias. Separou-nos entre os que seguem o caminho correto e os que seguem o desviante. Categorizou como um inquisidor as vontades de todos que trabalhavam e viviam por ali. Foi quando entendemos que a lei não é moral e a moral não é lei.
O fascista tinha deitado no quarto, sentado na sala e cuspido no chão da cozinha. E fascistas não vão embora fácil. Não nos avisaram que ele tinha chegado, sentado na sala e dominado nossas vidas. Nem seríamos perguntados se o queríamos ali. Decidimos não abrir diálogo, afinal depois do fascista esse artefato humano se consumiu em brasas extremistas. Tivemos que lutar, mas mesmo de cima de sua tirania não consentida, ele foi expulso. Da casa. Da comunidade. Da cidade. Do país. Da humanidade.
[Relativizar o absurdo talvez seja a primeira maneira de perder a liberdade.]
Pedro Carcereri é escritor, diretor, produtor e curador. Bacharel em Artes e Design e mestre em Artes, Cultura e Linguagens pela UFJF. Autor dos curtas “Modorra”, “Maria Cachoeira” e do romance “Sob o Trópico de Capricórnio”. Curador e crítico de arte, desenvolve exposições e pesquisas em diversas interfaces da arte contemporânea. Faz parte da seleção do Sesc Confluências – MG e é conselheiro de cultura de Juiz de Fora.
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