Uma vez Laura morou em um prédio. Nem sempre isso é característica de uma residência funcional e líquida: o apartamento de Laura tinha uma espécie de quintal, uma parte comum do prédio onde só ela e sua avó tinham como área externa por morarem no térreo. Era um pátio onde ficavam as garagens, separadas e fechadas. Em frente ao portão que levava desse pátio para a rua – usado pelos carros para terem acesso à mesma – havia um bueiro tampado. Esse bueiro tinha uma tampa, e como toda tampa de bueiro que se preze, ela fazia barulho quando alguma força lhe era aplicada. Mas o importante dessa história está em como essa tampa e seu barulho tinham influência extrema no humor de Laura. Todos os dias, pela manhã, ao ouvir aquele som singular sobre a tampa do bueiro, Laura se envaidecia, sentia seu pensamento dançar tão levemente com a liberdade que seu corpo podia sentir o êxtase em cada respirar. Um mundo se abria diante dela, onde tudo parecia ser possível e onde todos sentiam sua força e suavidade que, delicadamente, podia moldar qualquer sinal de essência até que a existência lúdica brilhasse mais. Naquele dia ela não estava contando com a existência daquele timbre que fazia seu despertar para si. Estava tensa e, sem conseguir dormir, pensava em como poderia driblar as pessoas que vinham em sua direção como numa escada rolante que se anda ao contrário. Criava teorias e porquês, buscando com eles uma potência mentirosa para não cair, ou pelo menos não sair muito ferida. Escrevia sentimentos antitéticos na esperança de uma talvez-possibilidade de chegar a alguma síntese. Estava presa: não cabia dentro de si a ponto de lhe doerem os ombros. A insônia invadia a manhã cinzenta e fria que insistia em lhe dizer que a luz não chegaria. O tempo se apresentava desleal e quase lhe forçava a tomar atitudes para suprir necessidades fisiológicas que tanto lhe incomodavam por não se sentir a vontade consigo mesma. Era infame. E, talvez por tamanha infâmia, ou pelo brilho mentiroso que as surpresas têm, ela escapou de si mesma. O som que para muitos podia prejudicar o sono, veio aos seus ouvidos como o sangue ao coração batendo; estava viva.
Como podia saber diferenciar os barulhos diversos da tampa do bueiro, não se sabe. Só se sabe que assim, no limite da solidão do lar vazio, se fazia ser.
Lua Xavier: vivo num clipe sem nexo, um Pierrot- retrocesso, meia bossa nova e rock’n’roll
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