O dia 20 de novembro passou e assim como em todos os anos, alguns discursos circularam na sociedade a fim de deslegitimar a data e a simbologia que ela carrega. Elementos diversos, a exemplo do vídeo em que o ator Morgan Freeman reforça a ideia de que se pararmos de falar em racismo, essa forma de violência contra determinados sujeitos desaparece, somente reiteram a ideia já contestada, de que vivemos em uma democracia racial. Ou seja, um país que todas as três raças¹ – o negro, o branco e o ameríndio – conviveriam cordialmente, sem estabelecer conflitos entre si, inclusive se miscigenando. Portanto, o pensamento se encaminha a justificar que não seria necessário um dia ou mês específico para refletir sobre as questões que recaem a um grupo, já que “somos todos iguais”. Aqui, pretendo discutir sobre a importância da data não somente para a população negra, como para toda a população brasileira.
O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravização de pessoas, muito em função da pressão de grupos abolicionistas, de países estrangeiros com interesses econômicos e dos próprios sujeitos escravizados que fugiam da situação de cativeiro, enfraqueciam o sistema e reinventavam suas formas de viver dentro deste território; a exemplo da sociedade de Palmares. O dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, foi decretado em 2003 como o Dia da Consciência Negra a fim de rememorar o líder de uma das mais emblemáticas sociedades que desbaratavam a ideia da dualidade Casa Grande versus. Senzala, para a possibilidade de uma terceira via para a população negra fugida naquela época.
Após a abolição, o Estado brasileiro não promoveu nenhuma política com o objetivo de integrar os sujeitos que agora se viam livres, porém sem instrução para exercer ofícios para além dos que exigiam o uso das forças manuais. Hoje, mesmo após anos de abolição da escravização, os sujeitos negros, em sua maioria, continuam a desempenhar funções subalternas na sociedade brasileira, se caracterizando como estrutura que impede este grupo de chegar a posições de poder. Uma pessoa que chegou a determinado cargo de prestigio se apresenta como exceção, não como regra.
O jurista e filósofo Silvio de Almeida, ao escrever Racismo Estrutural² para a coleção Feminismos Plurais, descreve as formas como essa violência incide sobre os copos dos sujeitos negros, e delimita três exemplos principais: o racismo individualista, o racismo institucional e o racismo estrutural.
Em resumo, o racismo individualista, para o autor, é entendido sob a égide de uma patologia. Seria uma ação isolada de caráter individual, às vezes tratada como distúrbio psicológico em que se aplicam discursos como “racismo é errado”, “somos todos humanos”, mas não age a fim de combater e erradicar o problema, já que este ato partiria de um desvio de moral pessoal (ALMEIDA, 2018. p. 28.).
Almeida aponta por racismo institucional a prática que não se resume apenas a comportamentos individuais, mas também pelo funcionamento das instituições a fim de conferir desvantagens e privilégios a partir da raça (ALMEIDA, 2018. p. 23). Assim, a desigualdade racial seria uma característica da sociedade não apenas pela ação isolada de sujeitos, mas devido ao funcionamento das instituições estar sendo controlado por grupos dominantes, e estes, agiriam de forma a impor seus interesses, mantendo, portanto, a hegemonia deste grupo dominante sobre os outros. (ALMEIDA, 2018. p. 30.).
Por fim, o autor aponta a concepção estrutural do racismo como práticas que estão difundidas na sociedade cotidianamente. O racismo seria inerente à ordem social, dessa forma as instituições e as pessoas em particular seriam racistas porque a sociedade entende práticas de racismo como regra. (ALMEIDA, 2018. p. 36-40.).
Sendo assim, é possível inferir que a estrutura da sociedade ainda se estabelece com base nas relações escravistas do passado, onde o sujeito que detém posições de prestigio e poder, acesso a espaços culturais e educação tem características pré-determinadas.
Após esse brevíssimo histórico de contextualização das relações raciais e sociais no Brasil, alguns questionamentos se apresentam: há a possibilidade de falarmos apenas em consciência humana diante dos fatos apresentados? Ainda que a Constituição Federal garanta a igualdade, esta é praticada para todos os grupos com suas especificidades?
Eu respondo: Não! Não é possível falar de democracia racial, quando a necropolítica³ é programa de governo. Não é possível falar em democracia racial, quando o as prisões agem no sentido de reproduzir senzalas, acumulando sujeitos negros, sobretudo homens negros. Não existe democracia racial no Brasil. É só entendendo os sujeitos brancos como grupo dominador que detém privilégios históricos, que poderemos não reproduzir o discurso da consciência humana em datas como esta. A partir de então poderemos entender a simbologia política da data do 20 de novembro, não enquanto uma celebração, mas uma rememoração, evocando a potencialidade para reflexão sobre os 388 anos que deixaram marcas significativas até os dias de hoje.
Notas:
1 É importante demarcar o uso do termo “raça” enquanto um conceito relacional, e não biológico.
2 ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
3 É a soberania de decidir quem deve viver e quem deve morrer através do exercício de poder, sobretudo Estatal/institucional. Ver mais em: MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. N. 32. 2016.
Luan Pedretti é professor de História, militante do Movimento negro em Juiz de Fora pelo Coletivo Negro Resistência Viva e pela Frente Preta da UFJF.
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