Amarrados, emendados, encaixados, justapostos, remendados, esticados. Poderiam ser tecidos, tapumes, lonas ou, ainda, napas que se encontram com intimidade. As tramas do acaso desenham sua juntura na medida em que a necessidade imprime sua força. A escolha parece arbitrária: o que se tem à mão, o que parece útil, o que se pode arranjar. O pigmento é a festa ancestral, inerente, inevitável. A sucessão dos dias provoca fluidez nas formas, mudando os contornos, a densidade, a saturação, movimento perene como a correnteza de um rio, que pouco importa a nascente ou a foz. Tudo ao redor parece mar. O rio segue cumprindo sua sina desejosa, sua tarefa arranjada, improvisada, mediadora. Ponto de contato, de encontro, de desvio, de passagem, tapete vivo. Assim acontece a imagem do fotografo francês Yann Arthur Bertrand, retratando um fragmento da Cidade do México. Uma ampla vista aérea nos revela um corredor de cores que, permito-me imaginar, abrigaria um mercado popular. A longa faixa multicor corta uma região monótona, quase uniforme, da cidade, com casas parecidas, ruas parecidas, construções de baixa complexidade e pouco destaque entre as demais. Quadras pálidas e alguns pontos de cor, quase insignificantes.
A fotografia é usada como destaque para que o jornal El País discuta como construir metrópoles habitáveis, segundo a opinião de arquitetos e pesquisadores premiados. A cidade é apontada como concentração de oportunidades em diversos campos da vida, como trabalho, educação, saúde e lazer. Entendê-la inicialmente pela escolha da palavra “concentração” já começa a abrir canais de proximidade com sua realidade mais sensível, aquela que nos conecta com a ideia de convivência entre distintas formas espaciais e de vida. Seu corpo é notoriamente fragmentado e, ao mesmo tempo, conectado, de constituição e uso mistos. Habitações, praças, ruas, monumentos e vazios vão destacando a vocação da cidade enquanto obra, fruto das modelagens e remodelagens dos tempos e anseios que a percorrem. Celebrar essa condição de simultaneidade e diversidade que a caracteriza, é para onde apontam as reflexões dos pesquisadores do artigo que, em sua totalidade, sublinham o uso eficiente do espaço dentro de uma lógica técnica ou “parcelar”, como classificaria o filósofo Henri Lefebvre, no livro O direito à cidade (1968). Ainda que sob uma ótica tendenciosa ao pensamento técnico de algumas áreas em relação à outras , emprega-se a tecnologia em benefício da coletividade, traduzida na construção, por exemplo, de ruas com formas diversificadas de ocupação: pedestres, bicicletas, carros e transportes públicos.
Esse olhar seria atitude resiliente frente às questões e problemas enfrentados pela cidade contemporânea; tentativa de garantir certa diversidade urbana em detrimento de sua regulação exclusiva pelo mercado, ou aquilo que Lefebvre chamaria de “ordem distante” (Estado e Instituições). As demandas e vivências não se encerram ou paralisam. A cidade, que não é entendida por apenas uma ou duas ou três ciências parcelares, mas por uma coletânea delas concatenadas com as relações que lá se desenrolam diariamente; as que tentam desesperadamente esconder; as reflexões que claramente estimulam e os tempos que nela se deitam, tem que aprender, constantemente, a reconhecer e lidar com sua polissemia. Não é capaz de filtrar o inesperado, o improvisado, nem frear as especulações do mercado. Acolhe as feiras livres, os ambulantes, os improvisos, a criação quilométrica de um céu de remendos no México e, ao mesmo tempo, projetos como o da UBER, que divulgam sua aviação urbana e pensam em vôos compartilhados e financeiramente acessíveis. A questão que se anuncia é: pensar ruas que sirvam para todos.
Com uma nota em sua página na internet, a prefeitura de Juiz de Fora divulga sua estratégia de política urbana para o caso dos ambulantes e ocupações menos legitimadas das ruas:
Denominada “A cidade é para todos”, a operação, de caráter preventivo, tem o objetivo de inibir a prática do comércio ilegal nas ruas centrais, demonstrando para a população a importância da organização do ambiente urbano, além de garantir a desobstrução das vias, de modo a possibilitar mais acessibilidade, mobilidade e segurança aos pedestres. Também serão verificados e orientados os ambulantes regularizados e o comércio formal.(PJF,2019).
Colocados lado a lado, os conteúdos das duas matérias parecem contradizerem-se. Qualquer leitor atento poderia encontrar-se no centro de um cabo de guerra. Enquanto uma extremidade considera o espírito de simultaneidade e diversidade do espaço urbano como estratégias relevantes para o seu desenvolvimento em quesitos como mobilidade, segurança e habitação, a outra vê-se atada às práticas públicas de roupagem excludente. Um lado aprecia a racionalidade aplicada e, ao mesmo tempo sensível às idiossincrasias da cidade, sob o slogan de “ruas para todos”, presente na matéria do jornal El País, o outro convence-se com abordagens pouco reflexivas no sentido de um pensamento que tenta amenizar conflitos ou mediar situações complexas, como descritas no site da prefeitura da cidade mineira. Ambas as justificativas valem-se da ideia global do “para todos”, mas talvez a palavra “todos” tenha, como a cidade, a sua vocação para a contradição; apresente, como algumas de suas vias, sentidos duplos, variados, interditados.
Chegamos até esse ponto, não para discutir medidas públicas ou técnicas para o funcionamento da cidade. Aqui, procuramos a brecha na cidade, a fissura que aparece nas relações que ela sustenta, matéria manipulável pelas objetividades e subjetividades viventes em suas esquinas; objeto de arte em constante construção (e desconstrução), alvo do pensar e fazer do artista. A contradição salta aos olhos, emerge de cada trinca do seu asfalto, concreto ou língua. O “tecido urbano” revela-se um imenso drapeado de vozes e condutas. E também de tempos: o tempo das práticas rudimentares, menos simpáticas e até repressoras, o tempo do diálogo, das discussões e busca de respostas ( efêmeras) para as situações e o tempo das aeronaves urbanas coletivas. Apesar da nossa imaginação, a cidade parece exercer o seu acolhimento aos variados e desconectados tempos; encontrar uma lógica naquilo que soa incongruente, afirmando a sua própria incoerência como liga para as oposições. É realmente estranho para um racionalismo sistematizante cogitar essas divagações delirantes sobre a cidade, mas o maior delírio , em contrapartida, poderia residir na negação de sua realidade de lugar de lugares, “mediação entre as mediações”.
Não se pode evitar o conflito. Possivelmente seja esse o lema urbano, sua condição tantas vezes ignorada ou rejeitada, mas ironicamente elementar. Ao mesmo tempo que se torna lugar de reunião, agrupamento, encontros e vivências, também revela-se “lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede das dissoluções das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível” (LEFEBVRE, 2001, p.85). Essa potencialidade e, muitas vezes, objetalidade do urbano encarnado na cidade estimula-me a pensá-la como território de poéticas para o artista. Antes de prosseguirmos, é preciso uma consideração importante, que diz respeito a definição de “cidade” e “urbano”, já que fizemos uma clara menção a sua possível distinção de entendimento. Nessa lógica, a cidade seria uma espécie de realidade presente, palpável, imediata, prático-sensível e arquitetônica, enquanto o “urbano” incluiria uma dimensão de realidade social, revelando relações que são concebidas pelo pensamento. No entanto, é importante ressaltar que esse “urbano” não seria uma entidade considerada puramente filosófica, uma vez que se presume sua realização no plano prático-sensível, sendo também morfológica.
A brecha que a cidade expõe e que insistentemente tratamos com desatenção, parece revelar nossa miopia ao mirá-la. Tratamos sua condição mais óbvia como desvio e, na maioria das vezes, encontramos mil estratégias para evitar a realidade da coisa: o conflito. Programas para melhoria da mobilidade, da segurança, da arquitetura, dentre outras ferramentas técnicas, parecem pensar os lugares a partir de suas lupas auto centradas, mas sempre acabam obrigados a encarar a velha sina da cidade de reunir aquilo que se encontra disperso. O desafio esboça a sua condição de existência. Ao mantermo-nos atrelados exclusivamente à ideia de eficiência, produtividade e lucro, no que toca a questão da cidade, assumimos um papel demasiadamente austero frente aquilo que essencialmente é constituído de matéria lúdica.
Através dos breves intervalos na cerca metálica que divide a cidade de Sunland Park (EUA) e Ciudad Júarez (México) foram instaladas gangorras cor-de-rosa para que as pessoas dos dois lados brinquem juntas. A palavra brincadeira poderia facilmente ser substituída por: entram em contato, relacionam-se, conversam através de seus corpos, experimentam-se. A ação pouco convencional, ou até pueril, não escapa à questão da querela que envolve as duas nações, ao contrário, só se faz urgente e sublinhada na paisagem devido ao significado da cerca que a corta. No momento em que o presidente Donald Trump carrega em sua promessa eleitoral a construção de um muro que ocupe toda a fronteira entre os dois países e que, mesmo sem a concretização da ideia até a presente data, já tenha levantado uma considerável quantia para reformar trechos da cerca, a presença de um simples dispositivo, usado para entretenimento e diversão entre crianças, ganha um atributo reflexivo. Segundo os artistas Ronald Rael e Virginia San Fratello, a iniciativa do trabalho é mostrar que ações de um lado têm consequências diretas para o outro, coisa que poderia parecer óbvia para a maioria das pessoas, mas que, de alguma forma, surge como uma surpresa.
A discussão daqueles lugares, tanto da fronteira em si, como também do impacto que ela representa para ambos os territórios, em suas práticas cotidianas, ganha notoriedade a partir do dispositivo “gangorra”. A fronteira conecta geograficamente dois lugares, determina objetivamente seus limites; a gangorra os conecta de forma lúdica, revelando outros eixos de contato, reconfigurando os limites, redesenhando as bordas. Isso significa pensar sobre as possibilidades das relações estabelecidas a partir desse lugar de contato, os conflitos que o tornam zona de tensão (e que, talvez por contraste, somos convidados a pensar e avaliar por meio das relaxantes gangorras) e a qualidade desse ponto específico: de lugar geométrico a lugar político; de lugar político a lugar artístico.
De lugar em lugar, o ponto inflamado é paulatinamente transformado em apoio para o brinquedo e para reflexão de como lidar com as engrenagens que sustentam as relações, implícitas na figura do fulcro. Seja qual for o eixo de possibilidades que analisamos a questão, todos estão pendendo de um ponto fulcral, e é importante lembrar que um desses eixos (no caso da gangorra, por exemplo) é capaz de alimentar o jogo, a festa, o relaxamento, o momento lúdico. Trocando em miúdos, leva-nos elaborar o quanto, graças às nossas divergências, estamos imiscuídos irrevogavelmente nesse parque de experiências, porque convivemos, trocamos, olhamo-nos; porque inevitavelmente colocamo-nos a “brincar”.
Sempre tive fascínio pela sombrinha ou chapéu mexicano, um brinquedo tradicional dos parques de diversão. Daquele grande , colorido, luminoso e algumas vezes musical sombreiro partem correntes que se esticam até terminarem em assentos. Gostoso é ficar sentado ali, as mãos nas correntes de um lado e do outro, o corpo balançando levemente na cadeira, juntamente com o frisson que nos toma enquanto esperamos a partida. A sombrinha gira e somos pouco a pouco lançados na paisagem. Não fossem as correntes seríamos arremessados ao longe. Mas estamos unidos a ela, somos também sombrinha naquele instante, parte das suas extremidades. Frequentamos o espaço repetidamente em círculos, sentimos o vento no rosto, voamos sem perceber que a sombrinha nos conduz e que voltamos sempre ao mesmo lugar de onde partimos. Podemos imaginar que fazemos uma viagem em linha reta, porque a cada volta o nosso olhar se atira para diferentes direções, mudam-se os sons, as cores, os desejos.
Pensar na emoção de me dispersar pelo espaço nas franjas do chapéu mexicano, é disparo capaz de devolver-me a um momento que não se limita à experiência dos rodopios do brinquedo , mas uma situação, uma época, uma vivência, um prazer, uma memória, um lugar. É um dispositivo que me oferece a experiência centrífuga com o mundo. Frequentar a cidade possivelmente nos exija alguma benevolência com essa força. Suas ruas, edifícios, sons, cheiros e pessoas, por mais que estejam diariamente presentes, que durem semanas ou décadas ou séculos, estão em constante movimento. A arquitetura muda, adapta-se aos tempos de modo funcional e estético, as ruas ganham nomes novos (questionamos o porquê de algumas ainda levarem os nomes de chefes de estado ditadores, enquanto outras passam a homenagear novas personalidades, que no tempo em que foram planejadas ainda construíam o seu lugar na história).
Frequentar o ambiente citadino nos expõe aos ventos ímpares das mesmas esquinas; ao desconforto de enfrentar o espaço com o corpo e as sensações, sabendo-se frágil pelo suor das mãos e vacilante frente à instabilidade das correntes e banquetas que nos sustentam. É saber-se habitante fronteiriço entre tantas margens que precisam estar integradas e conjugadas entre si e com o nosso movimento centrífugo. O “flanêur” descrito por Baudelaire, em O pintor da vida moderna (1863) andava pela cidade e surpreendia-se com suas mudanças, maravilhava-se com o modelo de cidade que se desenhava na modernidade, as tecnologias que permitiam uma vida mais veloz, as personagens que surgiam e adaptavam-se àquela realidade, os seus trajes e hábitos. Não deixo de pensar que também flanamos pela contemporaneidade afora. As mudanças continuam a nos perseguir e, à medida em que giramos pela cidade, reconhecemos novas dobraduras de seus espaços e de nós mesmos. Pendemos desse motor sem que necessariamente nos desprendamos dele, e seguimos descobrindo lugares a partir dessa desequilibrante cadeira de sombrinha.
Poderiam ser tecidos, tapumes, lonas ou, ainda, napas que se encontram com intimidade, cobrindo um corredor pelas ruas mexicanas, mas o fato é que, à sua maneira, são marcas de alguma forma de existir e conversar com a sua paisagem, modos de se inscrever, clandestinamente, naquele lugar, transformando-se em produto de sua ausência nas planilhas das “ciências parcelares”. Poética do imprevisto, obra não planejada. Provavelmente alguns se incomodam com a precariedade de suas formas, o obstáculo que impõem ao trânsito ou o inconveniente da aglomeração que favorecem; outros nem tanto, dada a sua imersão no espaço. Alguns encontram neles alguma funcionalidade, afinal de contas existem para suprir a necessidade de um grupo, outros sequer os viram. Há, ainda, quem neles reconheça qualidades que nascem das fissuras existentes entre o precisar e o não precisar, o concordar e o não concordar; que simplesmente (ou complexamente) revelam algo a partir dos encontros e desencontros nesses lugares, materializando a curiosa forma do urbano.
Certamente, é preciso saber lidar com a organização prática e técnica dos lugares, assim como, também, é preciso reconhecer aquilo que os atravessam e que é matéria das vidas que acontecem ali. Há uma dissimulação, um fingimento, um componente lúdico que precisa ser ativado para não acreditarmos além da conta nas verdades implantadas por interesses especulativos na realidade urbana. Incorporar “verdade” nessa realidade não deveria desconsiderar aquilo que emerge da sua linguagem lúdica, do momento de encantamento quando reconhecemo-nos passageiros-brincantes de um Chapéu Mexicano. O pensamento de Levebvre mais uma vez pode ajudar a pavimentar a relação que tentamos construir aqui, ilustrando que colocar a arte a serviço do urbano não significa adornar seus espaços com “obras” artísticas, mas que, por outro mecanismo, deixando a exclusividade do ornamento, representação e decoração, podemos torná-la “praxis e poiesis” em cada grandeza social, construindo “a arte de viver na cidade como obra de arte”. Nesse instante, quem sabe, somos capazes de capturar o descompasso das diferenças embalados pelas viagens no Chapéu Mexicano. De tantas voltas e tantas vistas, talvez possamos construir lugares conscientes de seu presente sempre em obras, e, portanto, sujeitos ao devir das coisas e situações, sejam elas a improvisada cobertura de cores e texturas que se instalam ao longo de uma rua , seja a paisagem do centro da cidade ocupada por comerciantes ambulantes e seus aparatos, sejam as gangorras na fronteira entre o México e os EUA…
NOTAS:
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
FARKAS, Solange; BOGOSSIAN, Gabriel (cur.). Akram Zaatari: Amanhã vai ficar tudo bem. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, 2016.
LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
A CIDADE É PARA TODOS. SEMAUR INICIA OPERAÇÃO JUNTO AO COMÉRCIO AMBULANTE. Disponível em <https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=65350> Acesso em: 23 de Jul.,2019.
ARQUITETOS INSTALAM GANGORRAS NA CERCA ENTRE EUA E MÉXICO. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/30/arquiteto-instala-gangorras-na-cerca-entre-eua-e-mexico.ghtml> Acesso em: 06 de Ago.,2019.
OUTRA CIDADE É POSSÍVEL. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/26/cultura/1495812995_702019.html>. acesso em: 06 de Ago.,2019.
UBER ELEVATE. Disponível em:<https://www.uber.com/br/pt-br/elevate/uberair/>Acesso em: 12 de Ago.,2019.
João Jacob é natural de juiz de fora, MG, com formação em Artes (Bacharelado Interdisciplinar em Arte e Design) pela UFJF. Atualmente faz parte do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cultura e Linguagens IAD UFJF (Mestrado – Turma 2019).
Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!
Galeria
Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.