Como eu disse no primeiro episódio do programa Sobre a Arte no canal da Bodoque no youtube, (que você pode assistir clicando aqui), as artes, antes do advento da fotografia, eram associadas apenas à representação da realidade. Gêneros como a pintura de paisagem, de retratos, naturezas mortas e nús artísticos moldavam a prática dos artistas para que seu desenvolvimento técnico fosse aprimorado dentro da referência estética da época.
No antigo Egito, por exemplo, a supremacia da religião na vida cotidiana, fazia com que as artes retratassem temas políticos e religiosos, visto que o faraó era representante oficial de Deus na terra. Por este motivo, a arte egípcia trazia, graficamente, a melhor maneira de representar e exaltar o faraó e as divindades do Nilo. Pernas e rosto em perfil e tronco de frente; no Egito haviam regras rigorosas que os artistas deviam cumprir para que a representação fosse feita de maneira clara e ordenada. Gombrich ressalta que o efeito de equilíbrio, estabilidade e harmonia eram a busca principal na representação egípcia:
“O Estilo egípcio incorporou uma série de leis bastante rigorosas, e todo artista tinha que aprendê-las desde muito jovem. A estátuas sentadas deviam ter as mão sobre o joelho; os homens eram sempre pintados com a pele mais escura do que as mulheres; a aparência de cada um dos deuses egípicios era rigorosamente estabelecida (…) “.(GOMBRICH, 1999, pág 65).
Vale lembrar também, que a arte da Grécia a partir do séc IV, influenciada pela mimesis platônica, buscava um ideal de beleza que não poderia ser encontrado na realidade imediata. Isto porque um artista nunca teria acesso à coisa em si, por assim dizer. Para eles, a realidade, a natureza e as coisas que lhes tocavam a percepção, eram, na realidade, uma cópia de um mundo ideal, uma espécie de reflexo embaçado daquilo que estava apenas no mundo das ideias. Logo, a representação artística, seria uma espécie de cópia da cópia. Sendo assim, só era considerado arte aquilo que fosse uma imitação ou representação da Natureza. Logo, uma pintura abstrata, teoricamente, não representaria a Natureza, portanto, não poderia ser considerada arte. Devemos lembrar, ainda, que não há na obra de Platão um discurso específico dedicado à arte. Suas questões são com o belo (não o da Gracyanne). Podemos dizer que o belo de Platão seria o rosto do bem e da verdade, ou seja, nada seria belo se não fosse verdadeiro e nenhum bem poderia existir fora da verdade (CAUQUELIN, 2005). Mas isso é assunto para outro texto.
Enfim, de qualquer maneira, como este não é um texto para esmiuçar as identidades estéticas das manifestações artísticas ao longo da história, volto à questão central que traz, a partir desses exemplos, como a necessidade de representação era a preocupação constante na produção artística. Mas, veja bem, não estamos dizendo que a representação não é a tônica hoje. Digamos que são coisas diferentes.
Como dito no vídeo, a crise da pintura, (entre outros fatores), contribui de maneira determinante para as busca e experimentações que expandissem os limites do que seria a arte. Assim, essa intensa pesquisa fez com que a ideia de arte fosse subvertida em sua definição. Por isso a eclosão de tantos movimentos artísticos na virada do séc XIX e decorrer do séc XX, que culminou na desconstrução e hibridização dos conceitos de pintura, escultura e possibilitou o surgimento de linguagens como os happenings, performances e instalações. Na realidade, tanto a fase inicial da arte moderna, quanto a passagem pra arte contemporânea, são consideradas momentos de crise que levaram ao extremo a necessidade de renovar o pensamento e o senso estético sobre a arte.
Não podemos deixar de destacar que o trabalho de intelectuais engajados nas pautas modernistas ajudou a construir as narrativas que contribuíram diretamente para desconstrução do conceito de arte acadêmica pré-modernidade. Na realidade, é justo dizer que a atuação de intelectuais críticos de arte foi de fundamental importância para a construção de processo artísticos que consolidaram o entendimento sobre a “nova arte”que estava sendo produzida, ao menos no meio artístico.
Pedro Süssekind, em seu artigo sobre o fim da Arte, destaca o papel de teóricos como Greenberg a partir de Danto para justificar a consolidação das narrativas que se construíam no campo das artes à época:
“Entretanto, para esclarecer essa hipótese, preciso ressaltar que, como grande crítico da arte moderna, Greenberg foi também um tipo de polemista, que revolucionou a teoria da arte desconstruindo os parâmetros críticos dominantes ainda nas primeiras décadas do século XX. Mais do que qualquer outro autor, ele foi capaz de justificar teoricamente, contra o juízo crítico tradicional, a inserção dos movimentos modernistas, como o Impressionismo, o Cubismo e o Expressionismo Abstrato, na linha mestra de evolução da história da arte no Ocidente”. (SÜSSEKIND, 2014)
Bem, eu disse tudo isso sobre a representação e sobre a ampliação da ideia de arte porque existe um imaginário coletivo onde a arte persiste como deleite e representação. Ou seja, qualquer coisa feita fora de uma execução técnica virtuosa e sensível que não represente uma paisagem, uma pessoa ou “coisas que exitem”, automaticamente não é arte. Inclusive, é possível que você que esteja lendo este texto, neste neste exato momento, não considere uma pintura abstrata, por exemplo, arte, quiça uma performance!
Entretanto, devo dizer, de forma fraterna, que é bem provável que suas convicções sobre o que é ou não arte tenham sido construídas em um ambiente onde a pluralidade de linguagens e proposições artísticas foi reduzida à anúncios publicitários e manuais de pintura. Talvez você nunca mude de ideia e mantenha sua opinião em riste. Tudo bem por isso. Por outro lado, devo dizer que é muito importante entender que uma opinião cunhada em padrões estéticos de gosto, construída de maneira precária e superficial não pode deixar de respeitar a Arte como campo do conhecimento, e o entendimento acerca da pluralidade de linguagens e proposições artísticas, exige conhecimento. Afinal de contas, eu nunca vi ninguém questionando um engenheiro se um prédio é realmente um prédio, mas, diariamente, precisamos convencer alguém de que o que fazemos é arte sim.
Referências:
SÜSSEKIND, Pedro. Greenberg, Danto e o fim da arte. Kriterion: Revista de Filosofia. vol.55 no.129 Belo Horizonte Jan./June 2014
HEGEL, G. W. F. “Cursos de Estética I”. São Paulo: Edusp, 2000.
GOMBRICH, Ernst Hans. A História da arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 16a Ed., 1999.
CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. – (Todas as artes)
Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco e é fundador da Bodoque Artes e ofícios.
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