Cheguei num momento da minha vida que do auge dos meus 25 anos, eu não sei se estou velha e supersticiosa ou esperançosa. Digo isso porque, confrontada com um ano atarefado, mas pouco vitorioso, fui motivada a fazer uma lista de aspirações para esse esperado ano de 20.20. Dentre as comuns que é estudar mais, atividades físicas e emagrecer, está também: ler mais. Pois então, imbuída pelas promessas de ano novo, me deparei com a crônica Auto-retrato de Carlos Drummond de Andrade.
Esse texto trata-se de um monólogo do Espelho, ali transcrito pelo autor
O texto começa assim: “Diz o espelho.”
Esse espelho é plenamente digno de estar em algum conto de fadas, ou é descendente daquele da Branca de Neve, pois entrega tudo de quem está diante dele.
Ao longo do texto, se encontram, com um sentimento de terno e amargo, procedente da fama do autor, inúmeras características dele. O texto avança, sem que pessoalmente eu encontrasse algum entrave, até quase no final da crônica. Ali Drummond apresenta uma frase digna de estampar qualquer buteco, e que só nos levam à reflexão depois, quando sóbrios, no texto estamos no auge dos causos da vida escolar do autor, e lemos: “… E que não é bacharel em direito,nem médico, nem engenheiro; é gente,apenas.”
Ser gente.
Ser gente é mais difícil do que ser qualquer outra coisa, porque a gente aprendeu e consegue ser tudo, menos gente.
A gente sabe ser aluno, professor, escritor, leitor, paciente, médico, pai, mãe, filho, irmão. Mas quando a gente não precisa ser nada disso? A gente se vira por ser gente?
Ser gente é algo tão difícil que me faltam palavras originais para descrever tal fenômeno, tanto que nesse momento eu recorro a uma metáfora, talvez igualmente de buteco, já que é o nosso ambiente familiar deste texto.
Eu tenho impressão de que a gente parte para a vida com uma mala.
E me parece que a primeira vista, que nada tem a ver com a música cantada pela Daniela Mercury, lutamos para enchê-la, a cabeça não se incomoda com a pressão de onde mergulha, os braços não doem, a perna tá boa e a coluna 10\10.
O tempo passa. Muitas vezes a gente nem vê. Outras vezes é tão desesperador quanto assistir o Coelho Branco que passa reclamando do atraso e assim como a Alice, a gente insiste em segui-lo, e iniciamos uma sequência de eventos maluca. E com o tempo, os passos já não são mais tão confiantes, a postura fica incorreta, cansaço e excesso de peso carregado são alguns fatores que podem provocar dores nas costas, e começamos a querer deixar partes das coisas pra aliviar a dor, nesse momento me lembro muito de uma passagem do livro “Se um viajante numa noite de inverno” de Ítalo Calvino, que diz:
“Desfazer-se da mala devia ser o primeiro requisito para que se
restabelecesse a situação anterior — anterior a tudo aquilo que ocorreu em
seguida. É nisto que penso quando digo que gostaria de recuperar o curso do
tempo: gostaria de anular as conseqüências de certos acontecimentos e restaurar
uma condição inicial. Mas todo momento de minha vida traz consigo um
acúmulo de fatos novos, e estes, por sua vez, acarretam conseqüências, e assim,
quanto mais busco retornar ao ponto zero do qual parti, mais me distancio dele;
embora todos os meus atos tendam a anular as conseqüências de atos anteriores,
e conquanto eu tenha obtido resultados apreciáveis nessa tarefa, a ponto de
animar-me com a esperança de um alívio próximo, devo considerar que cada
uma dessas tentativas provoca uma chuva de novos acontecimentos que
complicam ainda mais a situação original e que, posteriormente, terei de fazer
desaparecer. Por fim, preciso calcular muito bem todo movimento para apagar o
máximo com o mínimo de novas complicações.”
Se desfazer a mala não é tomar um paracetamol para melhorar o dor no corpo. É lutar para enchê-la mais, é querendo escolher apagar o ruim, mas pagando uma renúncia pelo bom.
Em 1988, Marcos Valle e Carlos Colla, escreveram e Sandra de Sá registrou no inconsciente mais profundo do brasileiro, tão profundo que até esquecemos, uma música que fala que ninguém sabe a receita de viver feliz. Se partimos de um ponto com mala, é pelo motivo de que tem viagem, caso contrário, seríamos tartarugas, e não gente,apenas.
Existem muitas coisas que pastores, escritores, doutores, vendedores, leitores e espectadores não fazem, mas gente faz. Mala grande é sinônimo de viagem boa, cabe tapete para os pés, cabe caixa de remédios, roupa de frio, travesseiro fofinho, metade espuma e metade sonhos.
Aurora Rodrigues é estudante de literatura e anda escolhendo quem quer ser, mas não encontrou saída para a alergia a amendoim, a paixão por jujuba e o ódio por guaraná Antártica. Quanto ao resto, tem usado o próprio nome para tentar refletir o renascer dentro de si
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