A premiação do Oscar em 2019 foi repleta de filmes de conteúdo, grosso modo, antissistêmicos, desde o popular Coringa até o azarão Parasitas, passando pelos documentários American Story, o vencedor da categoria, e Democracia em Vertigem, representante brasileiro na edição. Interessante notar o quanto o famoso evento norte-americano, que muitas vezes prima pelo alinhamento ideológico do momento nos Estados Unidos e tem lá seus pules de dez (os sempre franco favoritos filmes de holocausto, monarquia inglesa, cinebiografias de personalidade, dentre outros), dessa vez embrenhou-se na crítica à sociedade capitalista, em suas mais diversas variações.
Ocorre que o campo das artes, ainda que os mais conservadores segmentos voltados simplesmente ao entretenimento do público, oscila em seu humor conforme o tempo, em decorrência de reações e interações que denotam um dado “espírito do tempo”. Hoje, diante de um capitalismo claudicante que produz, em suas bases majoritária, mais exploradas e menos esclarecidas, excrecências políticas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, não há caminho no meio artístico que não conduza a uma crítica às aberrações que o capitalismo produziu para sobreviver.
Vale lembrar que dois fatos históricos, um distante, relativamente a outro mais recente, retratam o quando o atual momento político internacional é desdobramento de uma crise no capital. Nos anos 1930, tempos de depressão econômica tanto nos Estados Unidos do pós-crise de 1929 quanto na Europa do pós-guerra de 1914-1918, a ascensão de regimes autoritários na Europa (ainda, à época, o centro do capitalismo neocolonial nascido no século XIX), mais notadamente na Alemanha e na Itália.
Por sua vez, antes justamente dessa nova ascensão acrítica ultraconservadora que ameaça o mundo social e ambientalmente, o capitalismo vinha de uma crise bancária e imobiliária que levou Estados europeus à bancarrota, um banco norte-americano à falência e o Governo norte-americano a um novo vexame como o da derrota no Vietnã, nos anos 1970, desta vez deixando a contragosto a chamada Guerra ao Terror (em outras palavras, ocupações coloniais no Iraque e o Afeganistão visando ao controle do petróleo no Oriente Médio). Em suma, nova derrota. Poucos anos depois, o monumento anticapitalista Ocupe Wall Street assombrou o grande capital.
Por isso, a solução novamente encontrada pela burguesia foi o ataque ideológico simplificador, com apelo à ordem e identificação de um inimigo em comum, tal qual ocorrera 70 anos antes na Europa. Estados Unidos, a principal potência mundial, e Brasil, o mais frágil dos emergentes em termos de poderio militar e segurança informacional, foram os alvos encontrados. Um, necessário, os Estados Unidos. Outro, de ocasião, o Brasil e sua classe média ressentida com a ascensão social dos mais pobres e os avanços identitários em benefícios das minorias.
Tendo isso em vista, há de se lembrar do pensamento do filósofo Martin Heidegger (ironicamente, adepto do nazismo, o que nunca penetrou sua produção intelectual) sobre Ser e Tempo, nome de sua obra magna. Nesta, Heidegger defende que o ente só existe quanto ser. Trocando em miúdos, nós só existimos na medida em que nos sentimos presentes, em parte por meio do logos exaltado por Descartes, em parte via experiência ante os fenômenos. Ou seja, o que há é o “ser no mundo”, aquele que ocupa e “é” na medida de sua experiência e referência no espaço, interagindo com outros entes que também “são”; e “ser no tempo”, na medida em que este “ser” identifica-se junto (em conformidade ou contra, não importa) ao espírito do tempo, ou “zeitgeist”, termo original do alemão (o conjunto coletivo de pensamentos e paradigmas hegemônicos numa sociedade, num dado tempo), em que “é”.
Esse processo, de construção da identidade por meio do sentido produzido pela angústia humana em um dado espaço e tempo, Heidegger nomeia “ser-aí”, ou “dasein”. Em sendo assim, é natural que o “ser aí” das artes e de seus trabalhadores num tempo de negação à subjetividade e reflexão, seja defensivo, convergindo todos os artistas para um “dasein” que manifeste a contestação a este “zeitgeist”.
Todos os caminhos conduzem a Roma, no campo da intelectualidade e das artes, numa queda-de-braço hoje desigual nos campos político e simbólico.
Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.
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