Eles estão com muita pressa

Antoine de Saint-Exupéry

O que pode uma pessoa diante do ocaso? Não, meu leitor, não pode nada. O que narrarei fará revoltar uns, outros virarão as páginas com certa condescendência. É até provável arrancar algumas lágrimas, porém não mais do que isso, porque temos pressa. Pressa de tudo. Pressa da vida. Não há que perder tempo. Tempo é dinheiro. Tempo é vital, pois temos pressa. E eu não mancharei essas páginas com sangue velho e purulento. Não. Manchá-las-ei com o mais belo e mais novo e sadio sangue que possa existir. Há uma pessoa no prefácio da vida saindo da sua casa nesse exato instante. E eu sei o que está para acontecer. Não, meu leitor estúpido, não posso fazer nada. Tenho que deixar o destino encarquilhar suas engrenagens, mesmo que sejam duras e malfadadas. Essa pessoa que está na calçada, andando apressada e sentindo ressaca do mundo, teria o seu momento de glória esta noite. Seria mágico observar as pessoas admiradas indo a sua direção, cumprimentando-a pelo feito de lançar mais um livro neste país tão desprovido de cultura. Vamos chamá-la de Escritor, simplesmente. O Escritor, então, anda pela calçada apressado. Dentro de poucas horas, estaria autografando seu livro, lançando sua obra. E ele pensa como foi difícil chegar até ali, apesar de sua pouca idade. Os passos apressados indicam que ele tem pressa. Será da vida? Não, leitor, a pressa aqui é literal, não metafórica. Há algo a objetivando. Ele buscaria seu filho na creche, tomaria seu banho demorado e esperaria o exato instante desta noite que viria. Seu filho. É isso. Ele está apressado por conta do filho. Está atrasado, por isso tem pressa. No entanto, enquanto anda, pensa em outras coisas. Ele está feliz. Sim. Dentro dele escapa uma réstia de felicidade que se apresenta aos lábios de maneira discreta. O canto dos lábios sorri. Contudo, ele tem que atravessar. Atravessar o quê? A rua, caro leitor. Por que ele não continua no lado certo, por que ele pensa e se distrai? Porque a vida é assim: feita de instantes: impalpáveis, indeléveis, agônicos. Imprevisíveis. E é nesse instante que as coisas do mundo acontecem. Quem poderia imaginar que um carro arremessaria nosso desejoso Escritor? Eu não valho, leitor. Sou feito de tinta no papel branco. Imagino, mas e daí? Sou página virada. Um morto que renasce de seus lábios. Que posso eu contra isso? Valha-me Deus! Como você é burro, leitor. Não entende que estou aqui para alertá-lo? O Escritor sabe que algum dia não teria volta, só não sabe que esse dia chegará tão cedo, justamente no limiar de um acontecimento bom. Deixará esposa e filho e obra. No lançamento, enquanto alguns poucos desavisados esperarão, encontraremos uma mesa vazia, com um jarro de flores murchas, frias e maldormidas por cima. Algumas pétalas caídas, decompondo-se ali mesmo.

E o meu querido Escritor atravessa a rua. Vai distraído. E o carro, traindo o seu olhar, topa com ele. As pessoas em volta também têm pressa. Porém o gosto pelo grotesco atiça o sangue a esperar, aguardar o corpo que se atira no chão da morte. Não, caro leitor. Não é uma flor que nasce na poeira do asfalto, aproveitando uma fenda de vida, nem é o leiteiro ignaro. É simplesmente o nosso Escritor, que deixa escapar sangue tão saudável, tão vermelho e plaquetário. Ele, com os olhos e veias vermelhos, olha ao redor. Já não tem pressa, tendo-a agora o filho, que fica a esperar o pai, choroso e saudoso. E também já não pensa, para que pensar, gastar os neurônios nessa monta do momento, nesse vão acontecimento? Os técnicos o resgatam. Já não há nada a fazer. Só há ¾ de sangue de um humano ainda quente espalhado no asfalto. E as pessoas voltam a ter pressa, desfaz-se o silêncio, os carros buzinam, o trânsito enjeita. E o sangue a escorrer, manchando pneus e solas. O comerciante sente que aquilo enojará seus clientes. Onde já se viu! Tenho uma empresa a zelar, um restaurante a cuidar. E filhos para criar. Eles não podem esperar. Bem pensado, senhor comerciante. Esse balde e esse sabão vieram a calhar. E o sangue escorre, imiscuindo-se ao sabão e à água. Esfrega, senhor, não deixe rastros. Esfrega e entrega a morte somente a seus parentes. Nós não temos nada com isso. Temos que viver, pois temos pressa. A vida tem pressa. E o resquício de sangue escorre pelo ralo, alimentando ratos e o subsolo vivo do mundo.

E no carro, com apitos e supapos de realidades reinantes no interior da UTI Móvel, vai o nosso Escritor destilar seu último suspiro, fechando as páginas de uma vida em branco.

Espero que não esteja sendo incisivo demais, caro leitor, senão terei que me desculpar. Ou então, chamá-lo de tolo, pois a vida é incisiva. E só não percebemos isso porque, talvez, ainda, estejamos passando à margem desses instantes. Mas eles virão. Tenha paciência, seja tolerante. Não quero desapontá-lo, porém não tenho escolha. A vida está aí. É só assisti-la sem embuços, sem interjeições. E aí você perceberá que, assim como na incipiente e prematura e já acabada vida do Escritor, as flores murcharão, suas pétalas cairão, sem brilho nem cor. Murchas. Todas assim em cima da mesa vazia, como a tampa de uma tumba ornada por uma única flor: selvagem, raivosa, espinhos ainda incrustados em seu nervoso caule, ornado de amarelecidas folhas minguantes. A vida. É isso.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br



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