Quão ativos ou alheios nos encontramos frente a conformação da nossa própria história? Da história individual e da coletiva? Me perguntei após constatar como era possível que, um grande legado artístico se encontrasse carente de registros escritos, vulnerável a se perder junto com as memórias passageiras daqueles que tiveram a honra de conhecer o artista latino-americano chamado Vicente Rivadeneira (1926-2006) e sua obra.
Refleti e pesquisei sobre os possíveis motivos para que algo assim possa ter acontecido e depois de muitas perguntas e respostas, precisei entender a importância do ato de relacionarmos nossas memórias com a devida importância histórica, como algo fundamental, não unicamente para a construção histórica em se, mas também para a nossa própria identidade.
Este então, é um relato que nasce das minhas memórias, de outros, emprestadas e, por fim, todo esse conjunto de memórias entrelaçadas que constroem o que chamamos história. Como explica Halbacks, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. -1
Sobretudo esse texto vai se valer da fonte primária mais importante ao meu alcance, os relatos de Teresa Almeida, viúva do artista, que com uma lucidez, sabedoria e doçura extraordinárias soube transmitir com detalhes a essência do universo rico de arte e vida de Rivadeneira.
Vicente foi um artista sul-americano com uma produção artística tão diversa que poderia ser analisado como pintor, escultor ou ilustrador entre outras capacidades que desenvolveu com maestria. O artista porém, passou despercebido frente ao olhar seletivo da história que se escrevia naquele momento. Os escritos eram direcionados a investigar a pintura, principalmente a do tipo denominada indigenista, enquanto movimento. Talvez por que sua obra não pode ser inserida com facilidade em nenhum dos movimentos modernistas latino americanos, permanecendo ainda sem publicações textuais a seu respeito.
Vicente nasceu no Equador, numa cidade situada no meio dos imponentes vulcões da cordilheira andina, Riobamba (1926). Desde criança demostrou inclinação pelas artes, assim como um caráter marcante. Porém, seu início no mundo da arte careceu de apoio familiar, sobretudo do seu pai, mas em contrapartida o destino o colocou na Academia de Belas Artes de Quito. Única opção após ser expulso da escola, por defender valores considerados importantes para o mesmo, formando-se como o melhor estudante do ano 1950.
A morte prematura de sua mãe obrigou-o a trabalhar e a tentar inserir-se no mercado de artes ainda aos 14 anos. Por seu talento e domínio de técnicas foi contratado para realizar algumas grandes obras como a fachada da Assembleia Legislativa de Quito, sem colocar-se como artista responsável ou autor, devido a sua pouca idade. Curiosamente isso não o incomodava, porque mesmo depois de já ter ganho mais alguns anos, opta por não dar importância a colocar assinatura de sua autoria e nem colocar datas em suas obras.
Sua carreira também o levou a trabalhar como professor de comunidades indígenas, professor universitário, designer, e realizar todo tipo de encomendas (geralmente bustos de personagens importantes, esculturas monumentais, retratos e pinturas de temática religiosa); dentro de um meio fortemente católico e conservador que começava a ver movimentos diferentes.
Vicente trabalha com muitas linguagens como serigrafia, ilustração científica, ilustração editorial, monumentos, pinturas à óleo, escultura em pedra, colagem, gravura, desenho e até a realização de criptas. Seu magnífico trabalho em pedra, fibra de vidro, tela, bronze, acrílica, entre muitos outros materiais mostram o fruto de uma herança artesã de altíssimo nível, domina as distintas técnicas, conjugando-as com o desejo de exploração e criação incessante de um artista inovador.
Ao olhar sua obra, é quase impossível poder agrupar, ou classificar de forma determinada, existe uma pluralidade que chega a parecer elaborada por diversas pessoas. É possível de perceber uma ligação de Vicente muito grande com as artes e ofícios, assim como a um forte mundo espiritual. Sua esposa relata que dedicou alguns anos da vida somente a meditar após ter contato com os ensinamentos de Krishna Murti.
No seu tempo, a arte no Equador carregava uma história fortemente vinculada a religiosidade e tradição, ao mesmo tempo que se abria a representação de temas sociais como o indigenismo. Assim, como a experimentação da criatividade inovadora a todo nível (material, conceitual, técnico, etc.) própria do modernismo. Em alguns casos, esta pesquisa estava claramente associada a posicionamentos políticos, em outros não eram tão evidentes. Porque geralmente a arte tradicional era encomendada por um público mais conservador, uma elite bastante católica, enquanto surgiam as massas crescentes de esquerda que não só encontrava eco nas obras de denúncia social dos artistas “boêmios”, como também inspiração, hino para suas causas e ações.
Vicente ao que parece, não se encaixava em qualquer desses grupos de artistas ou outros possíveis. Preferiu levar seu desenvolvimento a margem de todos, isso por identificar fortes incoerências nesses meios de artistas, nas relações entre a vida, ideais e a obra deles.
As fotografias que acompanham este texto, trazem o motivo inicial e final dele, pois elas são um pequeno apanhado no mundo da vasta obra de Vicente. Nunca imaginei o quanto aquelas obras com as quais convivi na infância, marcariam o meu transcurso de vida. Hoje, como o Vicente também sou artista plástica e só muitos anos depois, enquanto trabalhava, as memórias guardadas no meu tato e olhar me permitiram perceber a dimensão desse fato. Tem vezes que parece necessário dar uma volta grande até encontrar – clarear, os reais motivos da nossa viagem, no mesmo local de onde partimos num início.
Espero que o leitor possa sentir o mesmo que sinto, o quanto na natureza aparentemente simples das nossas vivencias, memórias, contato com pessoas e elementos existe a diferença, uma riqueza insubstituível.
Conseguimos associá-la como história?
Notas:
1- HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. p.36.
Alegria Falconi é artista plástica, dos Andes do Equador. Mesmo sendo amante das montanhas, os encantos do mar a trouxeram para o Brasil, onde mora e trabalha. Adora misturar técnicas artísticas, combinar distintas áreas de conhecimento, e criar possibilidades para trocas culturais profundas. Entre suas outras paixões estão a ecologia e dançar flamenco.
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