Na avenida, histórias ausentes na TV e no Cinema

A pauta levantada pelo Carnaval em 2020, mais uma vez, veio de encontro ao estado de coisas que se configurou no Brasil, ao menos desde Golpe de Estado de 2016. Desde o samba de enredo da Tuiuti, “Meu deus, meu deus, está terminada a escravidão”, vice-campeão em 2018, ano após ano o protagonismo fica com quem discute temas relativos às minorias e à luta social, nada diferente das “Ganhadeiras de Itapuã” da Viradouro.

Vale lembrar que não era bem assim até então. Em 2016 ganhou pela Mangueira uma homenagem a Maria Bethânia, em 2015 um enredo polêmico da Beija-Flor em homenagem à Guiné Equatorial, possivelmente patrocinado por um Governo ditatorial, em 2014 uma fusão de mau gosto entre carnaval e Fórmula 1 da Unidos da Tijuca para homenagear Ayrton Senna. A virada do trivial para a luta social no Carnaval brasileiro é, portanto, consequëncia dos riscos que correm, no atual momento político, as populações que conduzem essa festa, atravessada pelas origens e identidades negras e indígenas que se encontram desde o século XVII.

Gestado desde os anos 1930, quando do princípio da aceitação social da cultura negra numa sociedade hegemonizada pelas minorias (em sentido numérico) brancas do Brasil, o samba cresceu junto às comunidades pobres do Rio de Janeiro. Fez-se dele, com o tempo, o rosto negro da cultura brasileira, levado ao cinema em Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, mas em geral descolado do restante da produção artística brasileira, seja a pintura, arquitetura, o cinema, o entretenimento de televisão. Exceção feita à música, mas com ressalvas.

Questionamentos referentes à opressão racial brasileira, como se acabou ou não a escravidão no Brasil apenas pela formalidade instituída na Lei Áurea, levantada recentemente pela Tuiuti e já anteriormente pela Mangueira em 1988, ano do centenário da abolição, com o enredo “Liberdade ou ilusão”; ou dos heróis esquecidos da cultura brasileira, apagados dos registros por se colocarem contra as estruturas de poder, como Zumbi, Tandara, Cablocos de Julho, Confederação dos Tamoios, lembrados pela Mangueira em 2019 e seu “História para ninar gente grande”; não se afiguram igualmente presentes sequer no cinema brasileiro, em que pesem suas muitas iniciativas de vanguarda.

Apenas tomando este último como exemplo, dezenas de lançamentos nos últimos anos, alguns por diretores que se tornaram consagrados mundialmente, como Fernando Meirelles e José Padilha, alimentaram inúmeras vezes a narrativa das comunidades da periferia como espaço de criminalidade e miséria, sem lançar luzes sobre seus focos de resistência, sobre suas religiões de matriz africana, sobre suas personagens trabalhadoras (que o são em maioria), sobre as próprias escolas de samba que (fora uma manca biografia do carnavalesco Joãozinho Trinta, em 2012, protagonizada por Mateus Nachtergale) jamais ganharam as telas do nosso cinema. Ponto para Cacá Diegues e suas iniciativas “Cinco vezes favela” (1962) e “5x favela: agora por nós mesmos” (2010).

Melhor será a representatividade da cultura negra no Brasil não (somente) quando atrizes e atores, apresentadoras e apresentadores negras e negros ganharem as telas de Cinema e TV, o que também é fundamental, mas quando histórias míticas, mitos originários e histórias reais de resistência das populações negras ganharem as telas em equidade com as já incontáveis produções voltadas pra a classe média branca, contemplada, a título de exemplo, por quase todas as comédias românticas brasileiras financiadas pela Globo Filmes.

Os mesmos caminhos nos conduziriam a conclusões parecidas, possivelmente, caso enveredássemos por outros segmentos, como as artes plásticas e a música que ganham expressão midiática. Ou não encontraríamos os mesmos brancos Portinari e Niemeyer, ou a mesma hiper-sexualização do corpo negro no que se chama de ritmos da periferia etc? Porém, reduzindo essa discussão ao audiovisual, de longe o produto artístico mais consumido no Brasil atual e aquele que mais possui interseções com o desfile das Escolas de Samba, que em si é uma sintonia fina de diversas manifestações artísticas produzindo sentido em conformidade com um dado enredo, pode-se perceber que este fala uma língua, aquele, outra, hoje no país.


Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.



Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!


Galeria

Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *