Um besouro entrou pela janela que dava de frente para a Praça da Estação zumbindo gravemente e indo de encontro à luz mortiça do banheiro, travando uma batalha com a lâmpada esquecida acesa que iluminava sorrateiramente a beirada da cama alojada no centro do quarto do hotel. Ele ressonava naquele instante um sono intranquilo, cheio de vozes e sombras e soluços e choros de bebê. O mesmo choro de bebê que ouvira e vira dentro da incubadora do hospital, gordo, saliente, balançando seus miúdos braços tentando descobrir aquele mundo novo e as coisas que o cercavam, já distante do útero reconfortante da mãe. Com o tic-tic do invasor contra o vidro da lâmpada, acordou um pouco assustado. Sua testa suava. Sentou-se na cama. Esfregou os olhos nos nódulos dos dedos e enxugou o suor com a palma de uma das mãos. A noite agonizava lá fora, e os raios tênues de uma Lua recém-minguante manchavam levemente o parapeito da janela. Já de pé, olhou ao redor e percebeu um pequeno movimento na praça, trabalhadores no ponto de ônibus, um caminhão estacionado e pessoas ao redor descarregando o que parecia ser a estrutura metálica de um palco. Sua mulher estava no hospital. Seu filho estava no hospital. O que era para ser o dia mais feliz da sua vida tornou-se um filme de Almodóvar. Seu pequeno rebento respirando opresso. O movimento dos enfermeiros no setor. O bebê desaparecendo no interior de paredes brancas e frias. Correu para a enfermaria onde estava sua esposa convalescente de uma cesárea para contar o ocorrido. Ela aguardava ansiosa pelo filho. A imagem alimentada durante os nove meses de gestação de uma enfermeira entrando com o pequerrucho todo rosado, embrulhado numa manta, destruída. O que tiveram foi a chefe do setor da UTI neonatal a visitá-los, a despejar profissionalmente todo o seu dia a dia hospitalar, mas que para aquele casal era uma novidade dolorosa. Seu filho teve sofrimento fetal, em consequência aspirou mecônio e está com o pulmão muito comprometido. Corre risco de vida, sim. Temos que acompanhar o quadro. Nesse momento, não posso dizer mais nada. Ah, e ele nasceu com dois dedinhos dos pés colados. E saiu arrastando a felicidade e a vida porta afora, deixando-os olhos marejados e túrgidos. Abraçaram-se, estavam atônitos. Ficaram o dia tentando entender se fizeram algo errado. Saíram de Chácara quando ela percebeu as contrações, pegaram uma carona com o vizinho amigo do casal. Acionaram o médico, tinham feito o pré-natal todo em Juiz de Fora. Deram entrada no hospital, e o menino nasceu aparentemente bem. Pedro seria o nome de batismo. A tia viajara vinda de Tocantins de Minas assim que soube do ocorrido. Queria socorrê-los. Fez questão de dormir com a esposa. Descanse, meu filho, vocês terão dias difíceis pela frente. Ele reservara um quarto de hotel barato para passar os dias em que o filho ficaria na UTI, queriam acompanhar tudo de perto. Com os olhos fixos no relógio da torre da Estação Central, os ponteiros perdidos no tempo como a sua vida naquele instante, a visão ficou turva e úmida, como se ele enxergasse a sua existência pelos olhos de um peixe preso e solitário no aquário de suas limitações, sustentado pela agonia de não se ter certeza de nada, de se ver perdido no horizonte de expectativas impalpáveis. Ajoelhou-se, como num drama teatral, escorreu o corpo pelo anteparo da cama e deixou-se levar soluçante, cambaleante em suas órbitas oculares, numa sofreguidão de ombros, de fungações, de convulsões sofridas que se misturavam aos soluços e gemidos gozosos vindos do quarto ao lado, mostrando-nos a todos o quanto a vida corre solta em todas as direções, em todos os cruzamentos possíveis, em toda sua incompatibilidade. Alguns dias se passaram, a esposa saiu do hospital, ninho vazio apertado no peito, coração e cabeça na UTI neonatal. Todo final de tarde iam visitar o filho, melhor momento do dia. Pedro se recuperava bem, para alegria dos dois. Como não se lembrar do momento mágico da primeira mamada na UTI, depois de dias tirando o leite para incentivar o organismo a continuar produzindo? O bebê removido com cuidado da incubadora pela enfermeira, que o embrulhou como um presente, a mãe sentada numa cadeira ao lado, olhos fitando o infinito, os braços abertos a esperar o filho, sôfrego por um contato, por reatar simbolicamente o cordão umbilical, mãozinha agarrada no dedo indicador da mãe sugando, num deleite contemplativo, todo o amor materno. Foi naquele instante que os pais se olharam, felizes, sabendo que o pior já havia passado. 21 dias foi o tempo da espera. No hotel, ao saírem, foram surpreendidos pelo mesmo sentimento que se alojava dentro deles. Olha a festa lá fora. A recepcionista, boquiaberta, regozijava-se diante de tanta alegria envolta em sua vida tão sofrida. Fachos de luzes riscavam o céu. E barulhos de foguetes comemoravam mais um ano da cidade, como se despedisse de seu filho de passagem, igual a tantos outros. Renascido. Iluminado pelos clarões insurgentes de uma urbe inconformada que celebra.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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