O que pega bem, o que pega mal
Uma reflexão sobre o alcance da cultura em um mundo globalizado.
“Bem, as pessoas podem ser loucas por tudo que é digital e ainda assim ler livros, podem frequentar a ópera, assistir a uma partida de críquete e reservar bilhetes para o Led Zeppelin sem por isso se segmentarem… Gosta de comida tailandesa, mas o que há de errado com a italiana? Espere aí… calma. Gosto das duas. Sim. Isso é possível”. Essas são palavras de Stephen Fry, ator, cineasta e apresentador de TV britânico, atualmente no comando do programa QI, na BBC.
Quais são os marcadores separadores das fronteiras da cultura em nossos tempos? Quais ferramentas sociais existem para definir quais os tipos de cultura que eu posso consumir conforme minha classe social, gênero, nacionalidade ou nível de instrução? Não somos mais limitados a consumir conteúdo cultural que diz respeito somente as nossas cadeias de relações. Talvez o que possa bem definir a nossa interação com a cultura em nossos tempos seja a reflexão de Richard Peterson: “Nenhum produto da cultura me é estranho, com nenhum deles me identifico cem por cento, totalmente, e decerto não em troca de me negar outros prazeres. Sinto-me em casa em qualquer lugar, embora não haja lugar que eu possa chamar de lar”.
No passado a cultura era um marcador de classes com triplo efeito – definição de classe, segregação de classe e manifestação de pertencimento a uma classe – como afirma Bourdieu. Segundo o sociólogo francês, as obras de arte destinadas ao consumo estético apontavam, assinalavam e protegiam as divisões entre classes. Havia o gosto das elites e naturalmente relacionado a “alta cultura” que despreza o “banal”, o gosto médio, típico das classes médias e por fim o gosto vulgar, venerado pelas classes baixas.
Hoje em dia não podemos observar mais tais marcadores com tanta ênfase. Talvez a cultura tenha finalmente alcançado sua pretensão original: servir como um agente de mudança do status quo, e não de sua preservação, como um instrumento de navegação para orientar a evolução social. Assim como define Matthew Arnold, “a cultura busca eliminar as classes, generalizar por toda parte o melhor do que se pensa e se sabe”.
Um jovem de elite branca não encontra dificuldades para consumir a cultura da periferia, frequentar um show do grupo de rap Racionais MC’S nas maiores casas do país. Uma jovem estudante do Capão Redondo não se depara com barreiras tão visíveis para frequentar um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo na Sala São Paulo ou no Teatro Municipal de São Paulo. Uma adolescente branca, parda ou negra de qualquer classe social não tem razões fundamentadas para não ser consumidora assídua do aclamado Korean Pop (K-pop). Por conseguinte, poderíamos citar mais uma porção de exemplos que demonstrem o movimento de “máximo de tolerância e mínimo de seletividade” como define Bauman ao pensar a cultura no mundo líquido moderno.
Porém, será que tal pretensão permanece pura e não cooptada por outras motivações que se transvestem de puras, para manter ainda tais escusas? Em outras palavras, será que apesar do movimento de universalização da cultura, ela realmente segue um fluxo de agente de mudança, livre das imposições ideológicas das classes dominantes?
Gilles Lipovetsky irá sugerir uma reflexão fundamental ao defender que o hipercapitalismo se infiltra e reconfigura todas as lógicas e reorganiza todas as atividades, inclusive culturais. Nessa nova realidade a cultura é produzida para ser consumida, quanto e por mais pessoas, melhor. Portanto, sob esse espectro a própria universalização das formas de cultura é uma ferramenta para a retro alimentação do status quo definido: a lógica do capital.
A linha divisória entre a identidade socialmente aceita e a apenas individualmente imaginada é a relação entre autoafirmação e loucura. É por isso que todos nós sentimos sempre uma esmagadora “necessidade de pertencimento”, a necessidade de identificar não apenas a nós mesmos como seres humanos individuais, mas como membros de uma entidade maior. Parece que a cultura em tempos líquidos tem alcançado justamente essa nova face; oferecer a sensação de pertencimento a todos, enquanto segrega a partir da sua própria lógica.
Será que os movimentos culturais podem realmente se manter puros em suas próprias convicções? Se já usamos como exemplo o consumo do RAP pelas “elites”, então nos voltemos para a obra “Racionais MC’S, sobrevivendo no inferno” e seu límpido exemplo dessas convicções: “A aposta do Racionais, ao contrário, está na construção de uma identidade formada a partir da ruptura com essa tradição conciliatória, por meio da afirmação de uma comunidade negra que se desvincula do projeto de nação mestiça concebido até então. Desde o princípio o rap nacional vai se reconhecer enquanto gênero cantado por negros que reivindicam uma tradição cultural negra por meio de um discurso de demarcação de fronteiras étnicas e de classe que denuncia o aspecto de violência e dominação contido no modelo cordial de valorização da mestiçagem”.
Por fim, se todos podemos ter acesso a todo tipo de cultura, então será que conseguimos defender que todos são iguais? Que alcançamos um padrão de erudição cultural que nos iguala ao invés de segregar como no passado?
Ao leitor cabe o problema.
Referências bibliográficas:
1 – Richard A. Peterson – “Changing arts audiences: capitalizing on omnivorousness”, Cultural Policy Center, Universidade de Chicago.
2 – Pierre Bourdieu – A distinção, critica social do julgamento, 2006
3 – Matthew Arnold – Culture or anarchy, 1869
4 – Zygmunt Bauman – A cultura no mundo líquido moderno, 2011
5 – Zygmunt Bauman – Globalização as consequências humanas, 1998
7 – Zygmunt Bauman – Vida em fragmentos sobre a ética pós-moderna, 1995
8 – Gilles Lipovetsky – A cultura mundo resposta a uma sociedade desorientada, 2008
9 – Michel Maffesoli – O tempo das tribos, 2014
10 – Racionais MC’S – Racionais MC’S sobrevivendo no inferno, 2018, p.25
Guilherme Mative Butikofer Keppk é professor, graduado em Teologia e graduando em Sociologia Política pela FESP-SP.
Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!
Galeria
Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.