Quando descobriu que estava doente, esmurrou a parede, quebrou os pratos na cozinha, pegou a cadeira ao lado e jogou sobre o tampo da mesa de vidro, que se estilhaçou no chão feito sua vida cão. Não poderia acreditar que entre tantas pessoas no mundo ele pudesse ser contemplado com tamanha aberração. Como poderia aguentar essa força da natureza assolando seu corpo? Estava ensandecido. Furioso. Não poderia deixar barato. Se tivesse que sofrer, alguém teria que ir junto. Resolveu sair à rua. Pegou alguns lenços em sua gaveta de roupas, assoou o nariz em um deles e saiu. Em cada ponto de ônibus, em cada corrimão, em cada lugar em que as pessoas pudessem passar e tocar as suas mãos, ele aplicava o lenço. Foi a supermercados. Tocou em tudo que poderia tocar. Começou a serenar o coração, ficou mais tranquilo, com um sorriso discreto no canto dos lábios. Agora sim, a ordem do mundo, para ele, estava começando a voltar ao normal. Não sabia qual poderia ser o seu destino, mas também, como uma roleta-russa, dava oportunidade para que as pessoas também pudessem ter o seu momento de terror. E aquilo o reconfortava. Foi a parques, percorreu ruas, pegou ônibus, com os lenços cheios de muco servindo como arma. Frequentou igrejas abertas. Tripudiou de Deus, excomungou os seus. Se o Mito podia, por que ele não? O que o diferenciava? Percorreu bairros. Como um candidato a mudar vidas, distribuía sua “glória” democraticamente, atingindo a todos. Aquela cidade veria que ele não poderia ser o único contemplado. Ah, não! Não mesmo! Quando já não aguentava mais, tarde da noite, saltando de um ônibus, um senhor, morador de rua, o interrompe pedindo algum dinheiro para comprar um prato de comida. Ele abraça o mendigo, passando as mãos pelo seu rosto, e o convida a ir a uma padaria na esquina para comprar algo. E os dois, felizes, seguem.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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