José(hífen)Rubem Fonseca: os livros e os vírus

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  aos ratos                 
(Alexandre Faria: Venta não)

Rubem Fonseca faleceu no último dia 14. Deixou também 11 romances, 18 livros de contos, um de crônicas e uma narrativa autobiográfica, intitulada José. Uma simples pesquisa de seu nome no catálogo de teses e dissertações da CAPES resulta hoje em mais de 200 títulos. Isso é indício de que há muitos Rubens Fonsecas em Rubem Fonseca. Há nele, também, muitos Josés, nome predileto de seus personagens e prenome que José Rubem Fonseca preferiu omitir de sua assinatura como escritor. Dividimos esse texto em duas partes, na primeira, “José”, Andressa Marques propõe uma leitura em perspectiva entre Josés ficcionais e o José autobiográfico. Em seguida, Alexandre Faria destaca a presença da poesia na linguagem supostamente fria e brutal do autor.

José

Desde que estreou no cenário literário, na década de 1960, Rubem Fonseca manteve-se longe dos holofotes, não concedendo entrevistas e evitando ser fotografado. Tamanho mistério gerou como efeito a procura por marcas da vida pessoal do autor em sua obra, as quais, de fato, podem ser encontradas. O universo de sua ficção reflete muito de suas experiências, como as de comissário de polícia, por exemplo. Gostos pessoais do autor também sempre fizeram parte do universo de seus personagens, como o apreço pelo vinho e pelo charuto, sempre por ele minuciosamente tratados. Uma semelhança entre vida e obra, porém, foi pouco explorada pela crítica por bastante tempo: a recorrência de personagens que recebem o prenome do autor: José. Dos vários Josés protagonistas que povoam sua obra, dois deles chama, especialmente, a atenção: o enfermeiro do conto “A matéria do sonho”, publicado em Lucia McCarteney (1967), e personagem José, do livro homônimo, de 2011.

O primeiro José, o enfermeiro, é um solitário e ingênuo rapaz do interior que tem sua subjetividade transformada após trabalhar como cuidador de um idoso, “seu” Alberto, e viver com ele e a esposa, dona Julieta, por dois anos. No trabalho, a personagem se afeiçoa ao casal e imerge no universo da leitura; além disso, por intermédio do Dr. R., vive na companhia de Gretchen, uma boneca de vinil com a qual mantém relações sexuais. É importante destacar que Alberto e Julieta são os nomes dos pais de Rubem Fonseca, e que em Dr. R. e Rubem há um interessante jogo nominal.

Em outro conto, “O livro de panegíricos”, publicado em Romance Negro e outras histórias, em 1992, José reaparece, também como cuidador de idoso, agora do velho Baglioni, mas totalmente transmutado: não liga mais para a literatura, não transa com bonecas de vinil e, menos ainda, é um rapaz inocente. José, a partir deste conto, é um assassino de aluguel. Nesta mesma condição ele reaparece em “O anjo da guarda”, de Histórias de amor, de 1997, porém, sob o disfarce de guarda pessoal, contratado por uma mulher que se sentia perseguida. Em ambos os contos, ele é contratado pela mesma pessoa, Jorge, o filho do Dr. Baglioni, mas com finalidades diferentes: no primeiro caso, para cuidar do velho Baglioni que várias vezes tentara se matar, no segundo, para dar cabo da vida de sua sócia, aquela mesma mulher que o contrata para protegê-la. Com José, o enfermeiro-assassino, nota-se o tributo de Rubem Fonseca à outro grande nome da literatura brasileira, Machado de Assis, no conto “O enfermeiro”. 

Embora assassino de aluguel, nos dois contos José é fiel a uma espécie de ética que o leva a desempenhar, em ambas as narrativas, atitudes opostas àquela para a qual fora contratado: ele não mata a mulher quando descobre a motivação do crime – ela estava atrapalhando os negócios de Jorge –  e facilita o suicídio do velho Baglioni – o qual não consegue conviver com a existência de um livro de panegíricos publicado em sua homenagem quando acometido por uma grave doença que, contrariando as previsões médicas, não o vitimara de morte. Para ajudar o velho a dar cabo da própria vida, deixa ao seu alcance uma caixa de Lexotan. Para livrar a mulher das perseguições que a atormentava, José mata Jorge e Sônia, sua secretária e cúmplice. 

Além disso, em “O anjo da guarda”, o narrador-personagem faz referência a uma situação análoga à que ocorre no conto “Fevereiro ou março”, de Os prisioneiros – livro de estreia de Rubem Fonseca, publicado em 1963 –, revelando que também é o narrador-personagem deste conto. Tal referência é de suma importância para que se perceba que há uma espécie de coerência interna e de continuidade entre um livro e outro do autor, sobretudo no que se refere aos livros de contos, conferindo unidade ao conjunto de sua obra. 

José, ao passar por processos de subjetivação diversos, é metonímico das “pequenas criaturas” de que trata Rubem Fonseca em toda a sua obra. Não por acaso, em “Agora você (ou José e seus irmãos)”, publicado em Secreções, excreções e desatinos (2001), o protagonista, também José, mas não o enfermeiro-assassino dos contos anteriores, em uma sessão de terapia grupal, transforma-se no paradigma de reação para os demais participantes da reunião. Uns querem ser como ele, outros gostariam de ter uma história como a dele – mesmo que repleta de humilhações –; alguns, por outro lado, querendo ser o oposto do que ele representa. Assim, o signo José, que enquanto enfermeiro-assassino tem sua trajetória de subjetivação, nos termos em que fala o filósofo italiano Agamben, promovida por dispositivos tais quais Dr. R., a literatura e a boneca Gretchen, passa a também ser um dispositivo que promove a subjetivação dos companheiros de terapia.

José pode ser considerado uma espécie de figuração de todas as personagens fonsequianas, seja o José que tem sua gênese narrada em “A matéria do sonho”, sejam os personagens comuns que protagonizam os dramas de “Agora você (ou José e seus irmãos)”, seja de Augusto, de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, enfim, das mais diversas “pequenas criaturas”que povoam a sua ficção. Ele sintetiza não somente seus dramas, mas também as saídas encontradas para que elas continuem na tentativa de viver em tempos pós-modernos, os quais são marcados pelo isolamento das subjetividades em si mesmas, da intransitividade das relações e pela crise de paradigmas. 

Em José, publicado em 2011, a coincidência entre autor e personagem extrapola a questão nominal. Há muitos indícios que levam não só ao estabelecimento de semelhanças entre autor e personagem, mas à identificação entre eles. Porém, a despeito disso, tal identificação não ocorre entre ambos e o narrador, que se apresenta em terceira pessoa, onisciente – recurso que dá à voz narrativa o conhecimento de todos os fatos, permitindo-lhe interpretá-los, analisá-los e, sobretudo, (re)criá-los. Assim, jogando com o autobiográfico e com o ficcional, a obra flerta com uma terceira via, a autoficção. 

A narração da história de José inicia sua infância, vivida em uma cidade mineira na companhia dos pais e dos irmãos, em uma casa confortável. É sabido que Rubem Fonseca, embora tenha vivido e escrito sobre o Rio de Janeiro, nasceu na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Há também a correspondência entre os nomes dos pais de José-personagem e os pais do autor: “O pai de José, Alberto, e sua mãe, Julieta, dois imigrantes portugueses, haviam se conhecido no Rio de Janeiro quando Alberto trabalhava no magazine Parc Royal e Julieta em A moda” (FONSECA, 2011, p. 19). Segundo consta na certidão de nascimento do autor, ele é filho legítimo de Alberto Augusto de Fonseca e Julietta Mattos Fonseca, casados no Rio de Janeiro, ambos portugueses. 

Segundo o narrador, Alberto ouvira falar do potencial econômico da cidade de Juiz de Fora, à época chamada de Manchester Mineira, e resolveu, junto à esposa, dar cabo ao sonho de começar um negócio semelhante ao grandioso Magazine Parc Royal, sonho ao qual o pai de José dera o nome de Paris n’América. Com o sucesso do empreendimento, a família desfrutava de uma vida confortável na cidade mineira e gozava de grande prestígio social. Há vários registros da vida da família em Juiz de Fora que comprovam tais fatos. Alberto Fonseca foi presidente da Sociedade Auxiliadora Portuguesa da cidade entre os anos de 1924 e 1928, por exemplo, além de ter sido gerente da filial do magazine Parc Royal na cidade. Nenhum registro, contudo, comprova a existência da loja Paris n’América.  

Contudo, embora morasse na cidade de Juiz de Fora, José não vivia ali. Ele vivia em Paris, para onde era transportado através da literatura por autores como Michel Zécavo e Ponson de Terrail, na companhia da pérfida princesa Fausta, do intrépido cavaleiro de Pardaillan e do prodigioso Rocambole. Assim, dos anos vividos em Minas Gerais, sua maior lembrança é a de Paris, e “essa parte da sua vida lhe é real”. Talvez por isso seja Paris n’América, para José, o nome mais apropriado para designar os negócios da família. 

Em 1933, a filial do magazine Parc Royal em Juiz de Fora encerra suas atividades,  ano em que José completa oito anos de idade, e a família se muda para o do Rio de Janeiro. Mesmo não pretendendo deixar de “viver em Paris”, com a mudança, a literatura encontra uma forte concorrente na vida de José, a cidade. Um dos trabalhos a que se dedicou para ajudar na renda familiar, assim como os irmãos, e de que mais gostou, foi a de entregador, pois permitia-lhe circular por toda a cidade. Tal ocupação, inclusive, “foi a mais agradável de todas, certamente mais prazerosa do que a de escritor”, afirma o narrador . 

Aqui, temos mais uma identificação entre personagem e autor, ambos são escritores. Além disso, a cidade é um dos principais motivos da obra de Rubem Fonseca, tendo no sofisticado conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” sua obra-prima. Neste conto, nota-se a semelhança entre a casa onde José passa a morar com a família no Rio, e aquela em que vive Augusto, o protagonista – este é, a propósito, o segundo nome do pai do autor. Assim como Augusto, que gosta de andar pelas ruas para pensar, “José […] quando anda resolve muitos problemas, solvitur ambulando”, (FONSECA, 2011a, p. 160) e afirma: “José já disse [isso] alhures”, numa referência clara ao conto.

A cidade é contemplada em diversas páginas. Ao reconstituir suas memórias, José reconstitui também a memória da cidade, completando o processo de reescritura da cidade iniciado em “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, passando à reconstituição da sua cidade invisível, aquela da sua infância, que em muito se assemelha à de Augusto-Epifânio. Ele descreve não somente o centro, mas também bairros, como a Lapa, por exemplo, que tem seu auge e declínio esmeradamente relatados no livro. Nestas descrições, são contemplados também os costumes dos moradores, as pessoas comuns, dos marginais e das putas. Submundo fortemente presente na obra de fonsequiana. 

É nesta cidade que José descobriu “a carne, os ossos, o gesto, a índole das pessoas”, que dão substância literária a Rubem Fonseca. Desta forma, podemos notar que o autor faz na prática aquilo que julga ser a fonte para a escrita literária: “a motivação de cada escritor está essencialmente ligada à sua vida, à sua experiência, desejos, ambições, sonhos, pesadelos” . 

Nesta perspectiva, nota-se que no espelhamento entre vida e obra, como aponta Deonísio da Silva, Rubem Fonseca “é o escritor mais entrevistado do mundo. Mas nos seus livros! Os jornalistas que se queixam de que ele não dá entrevistas dizem isso porque não o leem, ou, se o fazem, não o leem direito, isto é, sem velocidade, dispensando o tormento da pressa nas redações e a obsessão por ‘dar primeiro’, como se fruísse melhor quem o fizesse antes de todos, com sofreguidão, na mesa, na cama e em outros lugares. Para as notícias, a pressa é tudo. Para a literatura, não!” 

Rubem Fonseca

É contra essa pressa de acabar e as demandas de um mundo de urgências e multitarefas que a leitura do autor tem que ser objeto de contemplação. Não cabe na emergência de causas imediatistas e na dicotomia de opiniões desprovidas de reflexão e leitura. Recentemente, a adoção de suas obras em escolas foi objeto de polêmicas e reações negativas provocadas, seguramente, por quem não sabe ler ou, o que dá no mesmo, lê apressadamente sem se dar ao trabalho de rever convicções ideológicas. Depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, cronologicamente, Rubem Fonseca é o grande nome da prosa brasileira. Foi de todos o mais preciso, no estilo e no recorte temático, a dar conta da realidade brasileira urbana num momento em que nossas cidades explodiram na desigualdade social que culminaria nas cenas de violência que até hoje presenciamos. Não há como fazer uma cartografia do nosso crescimento urbano sem passar pelos mapas que Rubem Fonseca desenhou. Destaco dois fatos decisivos para que ele tenha se tornado o escritor que é (e sempre será): ter sido um leitor voraz de tudo, principalmente poesia, e ter trabalhado como comissário de polícia. Houve nisso uma educação sui generis do olhar e do estilo, que tornou Rubem Fonseca este patrimônio da literatura ocidental. 

Engana-se quem vê em sua obra o realismo cru dos olhos de um policial. Há nela a linguagem elaborada da melhor poesia. Rubem Fonseca está de olho nos poetas, como afirma em “Sopa de pedra”, um dos poemas bissextos que salpicou entre seus inúmeros contos publicados em 18 livros entre 1963 e 2018. E há em sua linguagem uma espécie de inversão de valores que Silviano Santiago já apontava em um artigo intitulado “Errata”, no livro Vale quanto pesa (1982). “Onde se lê — um pornógrafo, leia-se — um moralista”, assim enuncia o crítico. Essas inversões causam certo estranhamento e tornam a obra extremamente inovadora. Uma chave para leitura desse aspecto é oferecida pelo protagonista, também escritor, do conto “Pierrô da Caverna”, de O Cobrador (1979): “… então saí de lá pensando em fazer um poema usando a morte do animal como um símbolo. Toda arte é simbólica, mas não seria preferível, mais simbólico, escrever sobre pessoas se matando?”. A inversão se dá na medida em que aquilo que se pretende realista adquire status de símbolo. Outro exemplo claro desse tipo de inversão está nesse fragmento de diálogo do conto “Intestino Grosso”, de Feliz ano novo (1975): “‘Você não acha que isso denota uma preocupação mórbida com a morte?’ ‘Pode ser também uma preocupação saudável com a vida, o que no fundo é a mesma coisa.’”Ou ainda nesta passagem, ironicamente tão atual, de O caso Morel (1973): “Precisamos de mais perversão para moralizar o país”.

Já que se afirma esse lugar da elaboração poética em sua linguagem, nada melhor do que dialogar com poetas. Comecemos com um poema do escritor e jazzista francês Boris Vian (1920-1959):

La vie, c´est comme une dent
D´abord on n´y a pas pensé
On s´est contenté de mâcher
Et puis ça se gâte soudain
Ça vous fait mal, et on y tien
Et on la soigne, et les soucis
Et pour qu´on soit vraiment guéri
Il faut vous l´arracher, la vie.

Boris Vian: la vie c’est comme une dent

Proponho aqui uma tradução não literal:

A vida, isso é como um dente
No início a gente nem liga
Come contente e mastiga
Depois se gasta de repente
A dor vem, mas não é urgente
A gente cuida, e se preocupa
Até que ela volta mais aguerrida
Então é preciso arrancar isto, a vida.

Os dentes são uma verdadeira obsessão dos narradores de Rubem Fonseca. Elesbão Ribeiro, em sua dissertação de mestrado, Rubem Fonseca: a cordialidade violenta (PUC-Rio, 1985), levanta e classifica, até a publicação de A grande arte, 149 referências a dentes no conjunto da obra. É desnecessário afirmar que são reiteradas na produção posterior. Mas vale, mesmo sem um levantamento exaustivo, analisar os dentes — esses motores da sobrevivência com que se deve arrancar a vida — como metáfora que remete tanto à violência como à fome. Ambas também metáfora da pulsão erótica para o outro, para a vida. É uma fome abrangente, que pode ser compreendida como o confronto com a própria cidade, o alumbramento do menino que deixa a Paris dos livros para deambular pelas ruas do Rio. A cidade, enquanto espaço representativo da alteridade, através de seus múltiplos níveis discursivos − que vão desde o interpessoal, o das relações quase sempre intransitivas (conforme afirma Vera Figueiredo, autora do melhor livro sobre Rubem Fonseca, Os crimes do texto), ao global, representado pela comunicação de massa − deixa de ser um elemento meramente espacial para representar a presença física do outro. Sobre esse tema, cabe conferir o livro Eros na poética da cidade (2008), de Vilma Costa.

O conto que nos oferece a exata dimensão da presente abordagem é, não por acaso, “O outro”, de Feliz ano novo (1975): um executivo, que já começa a apresentar sérios sintomas de um violento stress, primeiramente vítima do excesso de trabalho que o mundo dos negócios lhe impunha, sempre com a sensação de que não “havia feito nada de útil”, passa a ser vítima de abordagens diárias de um pedinte: “um homem branco, forte de cabelos castanhos compridos”− eis como o executivo o descreve no primeiro contato. O gesto corriqueiro de dar um trocado ao pedinte evolui para uma relação estreita de dependência. Numa das vezes, ao ser questionado pelo executivo, “Mas todo dia?”, o pedinte argumenta: “Doutor, minha mãe está morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo, só o senhor”. Mais adiante a dependência se intensifica e o argumento do pedinte transforma-se em imposição, seguida por uma lógica de simplicidade absurda: “doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo”. O comprometimento do executivo, no entanto, deriva de uma origem diversa. A contribuição inicial não tem nenhum sentido filantrópico, funciona, na verdade, como a forma mais rápida para ver-se livre do sujeito: “…surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo ‘doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?’ Dei uns trocados a ele e entrei.” O que pretendia ser um desvencilhamento, torna-se, pelo contrário, uma perseguição que agrava o estado de saúde do narrador, levando-o a se afastar em férias, disposto a “nunca mais ver aquele sujeito”, pois, reflete o executivo, “que culpa eu tinha de ser ele pobre?”. Porém, até durante as férias, a perseguição continua e com um agravante: deixa de ser no centro da cidade, onde ainda se apresenta tolerável a convivência de opostos e passa a representar uma ameaça mais grave até que o medo é revertido através da violência, da brutalidade. Mas, desse lado da cidade, essa reversão garante a manutenção de um poder institucional. Vale, mais uma vez, recorrer a outro poeta, também muito presente nas leituras das personagens de Fonseca:

Meu Deus, matei um inocente.

Bala que mata gatuno

também serve para furtar

a vida de nosso irmão.

(…)

Está salva a propriedade.

Estes versos do poema “A morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade, ilustram mais uma questão evocada pelo conto: a manutenção da propriedade prescinde do reconhecimento do outro. Após executar o pedinte, que o esperava na porta de casa, o executivo (com direito ao trocadilho) vê que o “homem branco, forte”, como o descrevera no primeiro encontro, era na verdade “um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo sua face, conseguia esconder”. A conclusão do conto, além de corroborar a ideia de que o primeiro gesto de “dar uns trocados” apresenta-se como forma mais rápida de livrar-se de quem não se quer conhecer, acentua a deformação do olhar que a cidade proporciona, negando qualquer idiossincrasia para quem está na turba. Na verdade, pouco importa se o “menino franzino” era o mesmo “homem branco, forte”, pois, na visão do executivo, o outro sempre será invisível. Este outro é, via de regra, aquele que, na história do Brasil estará destituído de tudo em quem se acentuam e se conjugam traços raciais e sociais dos negros e pobres invisibilizados, da ralé brasileira, como define Jessé de Souza, em favor de quem Rubem Fonseca consigna uma dívida histórica: “Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”, é o bordão do protagonista do conto “O cobrador”.

Há que se levar em conta, no entanto, que o esquema da luta de classes não é suficiente para dar conta integralmente da fome e da violência que explodem metaforicamente na obra do autor. “Você tem fome de quê?” perguntarão os Titãs na famosa canção. No conto “O balão fantasma”, essa passagem de um diálogo sobre um grupo de baloeiros é decisiva:  “‘Tascam o balão porque não foram eles que puseram aquilo no céu, porque não perdoam ao balão ter caído das alturas, porque o balão é um corpo estranho nas ruas. Ele é como os pássaros migratórios mortos a pauladas nas praias do Nordeste porque estão andando exaustos na areia quando deveriam estar voando.’ ‘ Eles matam os pássaros porque sentem fome.’ ‘Os tascadores também têm fome. Há muitas fomes.’”.

Mas talvez seja “Olhar”, do livro Romance negro e outras histórias (1992) a narrativa em que, de forma mais requintada, Rubem Fonseca aborda a questão. Sua leitura permite o aprofundamento da metáfora da fome no que ela tem de mais humano e violento. “Arte é fome”. Este é o aprendizado do narrador do conto, um escritor cuja obra é considerada clássica, assim como o pode ser seu estilo de vida, pois apesar de ter dinheiro para se alimentar com as “mais finas iguarias, necessitava apenas dos prazeres do espírito − música, livros, teatro”. Já completamente impossibilitado de conviver com o outro − do alto de sua turris eburnea, “longe do estéril turbilhão da rua”, como aquele poeta de Olavo Bilac, como convém a um clássico − o escritor se considera “quase um misantropo”. 

Após uma crise de inanição provavelmente causada por só comer suflê de espinafre, imerso em suas apreciações da arte clássica, o que o deixa bem próximo da morte, muda seu comportamento, inclusive literariamente, como comprova o poema escatológico “Os trabalhadores da morte”, em que enumera uma série enorme de bactérias responsáveis pelo trabalho de decomposição dos organismos e conclui com a seguinte tirada: “[…] acabam com o que restou / de homem, de gato e cão. / Não há quem resista a esse exército / contido num cagalhão.” A conselho de seu médico começa a frequentar restaurantes: “A coisa mais criativa que o homem pode fazer é comer. Tenho um grande respeito pela gula. Comer é vital − uma obviedade às vezes esquecida”. O escritor é, então, iniciado no mundo gastronômico em um restaurante onde são servidas trutas, escolhidas ainda vivas em um aquário. Como lhe faltam critérios para a escolha do peixe, acaba optando por uma truta cujo olhar o encanta. Sua fome principal é de vida. Fica explícita sua decepção quando vai a outro restaurante que não tem aquário, e os peixes já o esperam “temperados”: “Era uma carne insípida, sem caráter ou espírito, insossa, sem frescura, enfadonha, sem elã, com um sabor de coisa diluída (…), de coisa morta.” Daí sua necessidade de encarar a presa ainda viva, pois é diferente o sabor da truta que já é servida morta, sem que ele a veja antes e sem que ela o veja, num reconhecimento pleno da alteridade que permite, mais do que o alimento biológico, a manutenção da vida. O reconhecimento que ele fará do outro, a princípio, por meio de um ciclo da cadeia ecológica, numa relação entre presa e predador, tomará, no decorrer do conto, um sentido gradativamente maior, até culminar no reconhecimento do humano através de seu próprio olhar no espelho. Esta é a sua necessidade maior: comer o outro, num gesto de integração que possibilitará o reconhecimento recíproco e a consequente morte do mais fraco. Uma morte, obviamente, simbólica.

Ao observar um coelho se alimentar, o escritor reflete sobre a forma delicada como os animais comem e conclui: “demonstram nesse ato, como todos nós, a fragilidade e beleza essenciais à sua singular condição animal. Arte é fome”. Assim como a arte, a fome revela e modifica o homem em todas as suas possíveis dimensões. E o escritor se revela um artista da fome, como o do conto de Kafka, que sempre quis ser admirado pela resistência à fome, mas não o pode, porque seu jejum nunca fora opção, apenas falta de alternativa. Assim como da falta de alternativa resultou sua peça literária “Os Trabalhadores da Morte”, que estão sempre atuando, seja contra “homem, gato e cão”.

Dessa forma, seja no extermínio de um pedinte, no esquartejamento de uma vaca atropelada (ver conto “Relato de ocorrência”, de Lúcia McCartney-1969), da caça a balões, ou nas agruras de escritores e artistas, a fome se revela, no plano do corpo ou do espírito, como essa vontade de arrancar com os dentes a vida. A vida é curta, sempre foi. Talvez, esses tempos de pandemia, possam apenas chamar a atenção de forma mais dramática para esse fato. Dirá outro poeta, Vinícius de Moraes, “que seja eterno enquanto dure”. A pressa nas redações, na cama, na mesa, no trabalho, de que fala Deonísio da Silva, aparece então como um sintoma cruel da sociedade que Rubem Fonseca critica em sua obra. Seja na incapacidade de contemplar e de se entregar à vida compartilhada nas ruas (o que não se deve absolutamente a um vírus ou outra causa biológica) ou na leitura de um livro feita nas coxas, não é essa pressa exemplo da voracidade com que se pode devorar a vida, mas justamente o contrário. Nela perdemos a sua eternidade. 

Pode parecer, nos tempos de hoje, de intolerância e obscurantismo, de terraplanismo e apologia do porte de armas, que a maneira mais viável de sobreviver seja pelo ingresso nessa roda-viva e pela anestesia geral diante do extermínio do outro, pobre, negro, mulher, indígena, ou idoso. Mas a obra de um autor que troca as armas da polícia pelas da escrita demonstra exatamente que a possibilidade de sobrevivência está também no reconhecimento desse outro, radicalmente, dentro de si mesmo. Por isso, antes de começar o mimimi contra professores que adotam o autor ou processos seletivos que valorizam seu texto, é necessário saber ler. E reconhecer que é nas artes, sobretudo a literatura, que se fortalecem os processos de subjetivação, de resistência e de reconhecimento da verdadeira fome, para, então, saciá-la.


Alexandre Faria é poeta, escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF. Atualmente está desenvolvendo pesquisa de Pós-doutorado sobre Criação Literária, na PUC-Rio e na Universidade de Coimbra.

Andressa Marques é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, na UFJF, e mestre em Letras: Estudos Literários pela mesma instituição, com a dissertação José, autor de Rubem Fonseca. Atua como professora de Literatura em escolas das redes pública e particular na cidade de Juiz de Fora.


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