“Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca.” Ap. 3:16
Mal te reconheci quando cheguei.
Você segurava uma dessas facas grandes
e descascava sem nenhum pudor
tudo que estava a sua volta.
Como não vestia roupas
declarou criminoso quem escondesse qualquer coisa,
deixando homens e mulheres nus,
enquanto batia a lâmina como um mangual.
De seu umbigo nasciam filhos adultos
com bocas, dentes e fomes.
Seu olho direito chorava uma lágrima grossa,
mas estava sorrindo, parecia feliz.
Você dançava sobre a ventania, gritando,
gritando alto, de um jeito
que o céu, que também espiava tudo, tremeu,
e choveu, e piscou por muito tempo.
Tínhamos medo. Não de que nos comesse,
mas de que, por sermos grandes, mastigasse.
Um por um nos colocou na boca,
para em seguir cuspir fazendo horrível careta.
Foi quando os sentidos se perderam de nós.
Você sabia. Você gostava, queria mais.
Nas pontas de seus densos cabelos negros
escorria melado e café.
Não chegávamos, porém, a eles. Quando muito alcançávamos
seu pé feio. Pé de índio, gasto no mato.
Aí, então, foi diminuindo até
ficar do tamanho da palma da mão.
“Quietos, a criatura dorme!”
Colocamos você junto ao arquivo das
fotografias de outros tempos.
Surgiram lendas de que um dia acordaria,
e dançaria novamente no meio do caos.
Sinceramente não sei.
Assim, dormindo,
olhinhos fechados e respiração leve
nem sabemos mais se tudo aconteceu
ou se nós apenas imaginamos.
Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.
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