Sem saber com exatidão se realmente dormiu ou se esteve em meditação para diminuir a ansiedade, pulou da cama em prontidão para, enfim, colocar-se a serviço do Outro. Bastou, no entanto, ouvir três palavras para que os ouvidos esquentassem; e tornou-se Parrásio tão logo se prostrou a movimentar os braços como resposta à breve expressividade de seu interlocutor.
Incorporando o trompe-l’œil aos movimentos, os braços finos tomaram vida própria e a mobilidade apaixonada dos membros aumentou em três vezes sua espessura, assustando até mesmo o mais corajoso guerreiro. Então, guiados não mais pela racionalidade lógica que a situação exigia, o norte era único, era amor.
Há quinze dias, o isolamento em casal parecia uma boa ideia, pois nos momentos diários de convivência sempre vivera na ilusão do romantismo último. Agora, aquelas palavras… Haverá futuro com elas? Descortinado o engano, via-se num mordaz romance de Virginia Woolf.
“a carne tinha se fundido com o mundo.
Seu corpo tinha se macerado até restarem apenas as fibras nervosas.
Estendia-se como um véu em cima de uma pedra.”
Enquanto a harmonia se mostrava na fachada, o rancor se escondia no interior do convívio. Da reflexão, seguiu o cessar dos movimentos dos braços, que logo voltaram a seu aspecto franzino.
À distância, seus olhos encaravam a aproximação do interlocutor, que desferira curtas ondas sonoras as quais, curiosamente, se materializaram na forma de adagas que pareceram golpear sua consciência, seja lá o que esta for. Com a mente confusa, a sentença lhe vinha à cabeça: “Eu te amo, mas não tenho obrigação!”. Ao que pensou nas três últimas palavras, voltou a se agitar e, tão logo se distanciou, sentiu o rosto acariciado por quem agora renunciava.
“Não tenho obrigação!” – afastou-se. Ora, só amam aqueles que nada esperam em troca, sempre acreditara nisso. Quando foi que abandonou o romantismo por uma relação mutualística? Quando foi que assassinou o romantismo para dar lugar ao escambo que ambos tanto aproveitaram? Se culpava, pois já não se movia mais pelo idealismo há muito tempo e só agora percebera. Tratou, então, de se afastar do corpo, agora estranho, com o qual coabitava.
“A ternura de um lobo por um cordeiro, eis a imagem exacta do amor que os apaixonados sentem pelo jovem amado”.
É isso! – sussurrou após se lembrar das palavras de Sócrates ao discípulo Fedro. Com a lembrança, levantou-se em grande intempestividade por entender o óbvio: tudo o que sentiu foi ressignificado aos moldes do capitalismo. Ó Sócrates, após milhares de anos ainda induz o parto do conhecimento.
Enquanto caminhava para outro cômodo para discutir com seus “eus” interiores, manteve-se em quietude, para quando, em real isolamento, liberar o caos que contagiava sua mente. Sentada com as mãos na cabeça, parecia invocar todas as entidades que compuseram e adestraram o que manifestava de si. Com os olhos fechados, conjurava na mente todos os algozes ludibriadores que eliminaram quaisquer chances de um dia sentir o que é o amor.
Já em pé, andando de um lado ao outro, se martirizava por ter confundido tudo. Então, inerte no centro do cômodo, junto à realização de todo o falso amor que sentira, sentou-se um sorriso nos lábios e uma curta gargalhada. Voltando-se para o espelho, ria; contemplava sua própria felicidade e a ironia do isolamento, que revelou a natureza mercantil-simbólica do relacionamento.
Percebeu, em meio ao êxtase, que em seu caso o romance se contrapunha ao amor em sua forma bruta; seu maior prazer não apresentava valor o suficiente para que seu par investisse na empreitada. “Se o amor fosse uma pintura, teria sido obra do grande Parrásio”, pensou, e assim como Zeuxis, decretou a própria derrota. Superada a ilusão, identificou em si o amor bruto – aquele que age para os quais de quem nada se espera. Com os ânimos à flor da pele, se preparava para amar, quando ouviu três batidas na porta.
“Vamos! Se te faz feliz…”
Pouco tempo atrás, se renderia. A essa que, aos olhos de seu interlocutor, seria a mais pura expressão de amor. Contudo, não havia mais espaço para expectativas ou para o líquen que se mostrou ser a relação entre o casal. A epifania descaracterizara totalmente o que haviam construído ao longo dos meses que passaram em conjunção; o relacionamento nada mais era que o resultado de um mutualismo afetivo.
Nada havia o que dizer. Encontravam-se ali duas vítimas de um equívoco ao qual foram imputados. Assim, esperava que sua saída repentina transmitisse todas as reflexões que agora já estavam ofuscadas pelo desejo de amar. Com o carro carregado, seguiu sua rota de distribuição das doações aos mais vulneráveis, cuja recompensa única seria o fortalecimento desse sentimento que sempre soube que existira, mas que só agora sente.
Matheus Queiroz é jornalista, diretor de comunicação da UNALGBT-MG, ativista antifascismo e apaixonado pela disrupção de constructos sociais.
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