Editorial – O que aprendi na quarentena

Distante da realidade habitual, diante da similaridade dos dias de um mundo em quarentena , a sensação que tenho é que o olhar sobre a vida passa por um processo de decantação. Me parece também, que esse processo torna visível as diferentes camadas que somos a partir da trajetória de nossas vidas, que nos trouxe até aqui.

Olhando nos olhos do tempo, aprendi que as nossas noções sobre aquilo que é essencial foram construídas sobre nossas vaidades, e que não resistem à dureza de encarar a existência de maneira simples e prosaica.

Aprendi que a simplicidade não consiste em uma busca pela excelência se valendo de poucos recursos, mas de observar nas pequenas coisas a potência da existência em movimento.

Aprendi que ao olhar pra luz que ilumina os objetos que adornam nossas casas, através dos vidros empoeirados de nossas janelas, percebemos quantas histórias podemos contar a partir de cada um deles, e tantas facetas de nossa personalidade eles também revelam silenciosamente.

Percebi que nossas convicções políticas não revelam a totalidade de nossa identidade, e que o exercício da alteridade parte do cultivo da dúvida sobre nossas certezas.

Aprendi que nossos corpos não são nossos, mas somos nós. Eu sou o corpo que habito, por isso não há necessidade de posse. O corpo não é propriedade.

Aprendi que as distâncias entre esses corpos não consiste apenas na presença física, pois na frieza de nossas rotinas não encontramos tempo pra sentir falta de quem amamos. O que fica nítido quando nem nos damos ao trabalho de responder simples mensagens, “porque estamos sem tempo”.

Percebi que no dia-a-dia da vida moderna, essa busca constante em sobrecarregar nosso tempo livre de atividades, é, na realidade, uma forma de não encarar de frente os problemas da existência, e a precariedade de nossa condição.

Aprendi que não somos o maniqueísmo social, político ou espiritual que pregamos, e que todas as pessoas tem a capacidade de perceber em si seus impulsos mais sórdidos e sentimentos mais solidários.

Inclusive, percebi que nosso poder de coesão social é muito mais forte do que qualquer segregação política, racial ou religiosa. Aparentemente estamos apenas sendo distraídos por cortinas de fumaça.

Aprendi que essas cortinas de fumaça, tentam esconder a vergonha e o medo dos poderosos, por causa do desespero diante da percepção de que, na realidade, são pobres e estão cegos e nus, sentados em seus tronos de pó.

Percebi que ninguém é ou deixa de ser, visto que somos o empilhamento do que fomos frente àquilo que podemos ser. Por isso, a mudança é a única coisa permanente em nossas vidas.

Aprendi que em tempos como os que vivemos, a esperança é atacada cruelmente por todos os lados, mas que nós somos a caixa de Pandora responsável por salvaguardá-la de nossas vaidades.

Aprendi que não existe dor que não possa ser superada, e que não há motivos pra crer que já não temos tudo o que precisamos.

Finalmente percebi que isso tudo vai passar. Que seremos capazes de nos adaptar à nossas transformações. E que essas transformações sempre estarão em busca do sentido mais profundo para exercer o que é a vida.


Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco, Museu de Arte Murilo Mendes e é fundador da Bodoque Artes e ofícios e da Revista Trama.


Galeria: Artistas para seguir na quarentena

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