Editorial – No porão de nós mesmos

Na sobriedade de nosso cativeiro moderno, a visita aos porões de nossa identidade nos mostra outras versões de nós mesmos.

No princípio, era o confinamento uma oportunidade de se afastar de nossas rotinas assoberbadas, sem brechas sequer para tocar os próprios planos. Além disso, poderíamos contribuir para que menos vidas fossem perdidas e ainda reduzir as chances de contaminação de quem não pode optar por ficar em casa. Ao mesmo tempo, ao ficarmos recolhidos, teríamos a oportunidade de aproveitar o tempo que nos faltava. Acontece que aos poucos, o silêncio – que era o conforto da alma eletrificada pelo cotidiano intenso – se tornou um objeto pesado sobre nossas cabeças.

Por conta das diversas nuances que o confinamento apresenta, é extremamente improvável que continuemos os mesmos após esse processo. Mas como disse certa vez Câmara Cascudo: ninguém é ou deixa de ser. Isso significa que não temos condições de definir quem somos, tendo em vista que estamos em constante processo de construção, mas, ao mesmo tempo, significa também que não podemos ignorar o que já se foi construído. Nesse processo que é exercer a vida, nossas vivências já dariam conta de mudar quem somos, ou pelo menos quem pensamos ser. Por outro lado, se todas as experiências são transformadoras, porque nem todas as transformações são perceptíveis? Afinal de contas, em condições normais, cada um de nós viveria suas alegrias e tristezas, comemoraria suas vitórias e carregaria suas derrotas, como quem faz com prêmios de consolação, e, com o passar do tempo, não se perceberia mais o mesmo.

Nesse sentido, devo dizer que o que torna esse cenário de mudança atual tão perceptível é de fato a nossa presença nos porões de nós mesmos. Muito além do confinamento, estamos presos à realidade paralela à nossa rotina habitual, que retrata diariamente um “mundo lá fora” tão apocalíptico quanto qualquer série ou filme distópico. E ao nos depararmos tão intensamente envolvidos com as agruras da contemporaneidade, descemos mais um pouco as escadas desse porão, sem saber ao certo o que encontraremos lá em baixo.

Felizmente, podemos sentir dia após dia que a capacidade de praticar ou ser conivente com aquilo que é mal, repulsivo e destrutivo nos choca cada vez mais, ao ponto de ficarmos atônitos diante dos fatos. Os números noticiados se convertem em histórias de vida em nossa percepção, lembrando a dignidade de quem foi vitimado entre tantos feridos. E, mais do que isso, todo levante vil e traiçoeiro contra a dignidade humana nos indigna cada vez mais. Todos esses elementos, que se encontravam empoeirados no porão de nossas vidas, estão sendo cuidadosamente recuperados, com o cuidado de uma mãe gentil que prepara a mochila de seu filho para seu primeiro dia de luta. 

Nesse dia, quando as portas se abrirem para as ruas novamente, nossos corpos serão incendiados pela luz da liberdade, recolheremos os cacos pesados do silêncio do velho mundo, para trabalhar incansavelmente, em novas versões de nós mesmos.


Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco, Museu de Arte Murilo Mendes e é fundador da Bodoque Artes e ofícios e da Revista Trama.


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