Da sala de aula para a sala de casa: aulas online garantem a continuação de cursos profissionalizantes para grupos socialmente vulneráveis durante a pandemia no Brasil.
No final de 2019, Maria Lúcia Machado, uma mulher transexual de 67 anos, estava planejando iniciar um novo emprego no setor de alimentos logo ao início do ano seguinte. Em dezembro passado, ela e 23 colegas (incluindo homens e mulheres transexuais) se formaram no primeiro curso de profissionalização promovido na cidade do Rio de Janeiro pela Cozinha & Voz, um projeto que oferece treinamento profissional para cozinha assistentes e aborda a empregabilidade de grupos populacionais vulneráveis.
“O curso foi ótimo e eu estava planejando encontrar um emprego em um restaurante ou hotel, como recepcionista. Este é o meu sonho, e senti que havia melhorado minhas habilidades após o curso ”, disse Maria Lúcia.
Chegou, então, o ano de 2020, trazendo consigo a pandemia do COVID-19 e seus impactos entrelaçados na saúde, na sociedade e no mundo do trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que mais de quatro em cada cinco pessoas (81%) na força de trabalho global (composta por 3,3 bilhões de pessoas) estão, atualmente, sendo afetadas pelo fechamento total ou parcial do local de trabalho. Serviços como os de hoteis e restaurantes estão entre os mais atingidos em todo o mundo.
À medida que a pandemia evolui e as medidas de distanciamento social são implementadas em todo o Brasil, o que se pode fazer enquanto a vida não volta à rotina e as oportunidades de emprego se tornam ainda mais limitadas? Uma das opções é estudar, que pode ser uma maneira eficaz de lidar com a solidão e aumentar as chances de encontrar um emprego em meio à pandemia.
Buscando garantir treinamento e capacitação contínuos, a OIT no Brasil e o Ministério Público do Trabalho (MPT), parceiros do projeto Cozinha & Voz, desenvolveram um plano de contingência para garantir a profissionalização dos alunos com um método inovador que inclui aulas online ministradas via ferramenta de videoconferência e bate-papos online.
“Até agora, este projeto nunca foi realizado neste formato. É um grande desafio para nós fazer cursos online que exigem um nível tão alto de atenção direta aos alunos. ”, Afirmou Thaís Faria, diretora técnica de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho na OIT. “Se conseguirmos bons resultados, poderíamos usar esse formato para alcançar pessoas em regiões remotas do país, para que participem do curso Cozinha & Voz via internet”.
Foi assim que, na segunda-feira, 20 de abril, Maria Lúcia se reuniu com as colegas do curso de assistente de cozinha, usando apenas um telefone celular para acessar a sala de aula virtual. “De repente, tudo mudou. As pessoas estão mais afastadas, mas mais próximas, e é isso que importa. Em nome de todos nós, gostaria de agradecer, porque é muito importante que nos sintamos valorizados como seres humanos. Tentar mais facilmente encontrar nosso lugar na sociedade ”, afirmou Maria Lúcia.
Ao todo, uma turma de homens e mulheres com 50 alunos, dos estados brasileiros de Goiás, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo, participará das aulas online semanais pelos próximos quatro meses. O currículo apresenta palestras, debates e aulas diárias de música, poesia e dança; oficinas de gastronomia; orientações sobre como redigir um currículo; palestras de especialistas de diferentes áreas sobre temas como discriminação e direitos no local de trabalho; entre outros.
Psicólogos estão disponíveis para fornecer suporte aos participantes que solicitarem, graças a uma parceria estabelecida. Além disso, cada participante receberá mensalmente uma bolsa de R$ 500 durante o curso, para que possam participar das aulas e permanecer protegidos em suas casas. “O apoio financeiro é essencial para que os alunos possam se dedicar ao curso com mais tranquilidade, mantendo-se seguros e respeitando as medidas de contenção”, explicou Thaís Faria.
Na modalidade presencial, o Cozinha & Voz é estruturado em dois módulos. O módulo “Cozinha” é entregue sob coordenação técnica da chef argentina Paola Carosella, com o apoio de Neide Rigo e Fernanda Cunha. Já o módulo “Voz” é coordenado pela atriz e poetisa Elisa Lucinda e pela atriz e diretora Geovana Pires, ambas membros do instituto Casa Poema. Esse módulo consiste em oficinas, nas quais os alunos aprendem a se comunicar melhor no trabalho e na vida por meio da poesia.
O curso de dois meses consiste em nove lições sobre habilidades básicas necessárias para trabalhar em um restaurante. O projeto também mobiliza empresas para apoiar a empregabilidade de graduados, uma das fases mais difíceis, pois mesmo em um setor que precisa de novos entrantes, muitas vezes essas oportunidades são difíceis de encontrar. Assim, a participação das empresas no projeto é essencial.
Da sala de aula à sala de casa – Assim como Maria Lúcia, a maioria dos alunos nunca usou um telefone celular antes para acessar uma plataforma digital de aulas online ou para participar de reuniões. Portanto, o ambiente da aula virtual inaugural da Cozinha & Voz contou com muita expectativa, curiosidade e inclusão digital.
“Tem sido uma coisa muito interessante e diferente, porque eu nunca havia usado métodos de ensino à distância para estudar. É uma honra para mim participar de um curso de renome, como Cozinha & Voz. ”, disse Larissa Raniel Pinto, ao vivo da sala de sua casa, em São Paulo.
A coordenadora geral do projeto, Geovana Pires, disse que a adaptação e o compromisso contínuos são essenciais. “Todos nós teremos que estar vigilantes durante o projeto para entender como essa nova maneira de interagir funciona, e precisaremos adaptá-la ao longo desses quatro meses de curso”, disse ela.
Representantes do MPT também se juntaram à classe virtual. “Estamos trabalhando neste projeto há muito tempo, e é uma honra para mim participar desta aula e ter um contato mais próximo com os alunos”, disse a vice-procuradora-geral do Trabalho, Sandra Lia Simon.
A advogada trabalhista do estado de São Paulo e gerente do projeto de empregabilidade da população LGBTQI +, Sofia Vilela, disse que o Cozinha & Voz promove a empregabilidade do grupo e lhes dá “oportunidade e voz”.
De São Paulo ao Brasil – Em 2017, o curso Cozinha & Voz começou na cidade de São Paulo, com uma turma composta por 25 pessoas trans. Nos anos seguintes, o projeto alcançou outras cidades do país.
Em cada cidade e com cada grupo, são organizadas atividades e cursos específicos, como mesas de discussão sobre legislação, saúde, direitos trabalhistas, aulas de dança, arte, música, fotografia, entre outras. Os cursos são apoiados por organizações de empregadores, tais como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Desde o seu lançamento, o Cozinha & Voz já treinou mais de 314 pessoas como auxiliares de cozinha. Atualmente, 70% des ex-alunes estão empregades em empresas ou estabelecem negócios próprios no setor gastronômico.
Matéria originalmente publicada em Nações Unidas Brasil em 21/05/2020 – Atualizado em 21/05/2020.
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