Editorial – Sobre o que nos separa de nós

Enquanto eu assistia a transmissão ao vivo do lançamento de dois homens em um foguete, rumo à estação espacial internacional (ISS), pensei no possível alívio que um cosmonauta deve sentir ao deixar o planeta atualmente.

A Live, feita pela empresa de tecnologia espacial norte-americana, SpaceX em parceria com a NASA, cobriu minuciosamente todas as etapas do processo, desde a preparação para o lançamento, até o momento em que o módulo se acoplava à estação, integrando os dois cosmonautas americanos à gigante estrutura de aço, que flutua placidamente em meio ao vazio.

Eu não conseguia parar de pensar nas agruras da vida moderna ao ver aquelas imagens, sobretudo em tempos de pandemia, e em um país onde ideologias neonazistas se escondem atrás de copos de leite na mesa do Presidente da República. Pensei na possibilidade de haver um distanciamento social tão eficiente quanto o daqueles que habitavam o pálido ponto branco solto no vazio da imensidão escura do universo.

No tempo em que vivemos, os aparatos tecnológicos que foram desenvolvidos para diminuir as distâncias entre cada pessoa ao redor do globo, também foram responsáveis por pulverizar discursos que insistem em nos separar. A diversidade de pensamentos não foi entendida como um recurso rico e admirável, mas sim como celeuma de processos históricos segregacionistas, onde a conduta beligerante marcou verdades provisórias inquestionáveis em nossas peles.

Enquanto o módulo se afastava cada vez mais da terra, pelas pequenas janelas arredondadas do módulo, os dois mais novos heróis americanos não puderam enxergar qualquer linha que demarcasse qualquer fronteira entre as nações. Enquanto nós, aqui, diante da pequena janela retangular que dispomos em nossos bolsos, enxergamos muros intransponíveis, construídos ao longo das eras para impedir que ameaças externas invadissem nossas supostas propriedades. Como somos tolos. Não percebemos que, na realidade, fomos nós que ficamos presos dentro.

Além de toda a barbarie que cerca as comunidades humanas desde o princípio dos tempos, o que me impressiona de fato é a facilidade com que encontramos motivos para odiarmos uns aos outros. E claro, a banalidade desses motivos. Aparentemente, a hierarquia de nossos capitais simbólicos sempre fornecerá elementos para que nos posicionemos dentro de estruturas de poder em nosso meio social. Uma pena esse posicionamento sempre se constituir como uma luta para ocupar o trono do opressor.

Quando a missão caminhava para seu fim, e os cosmonautas se encontraram com os outros integrantes da estação, as fronteiras que eles não podiam ver pelas janelas estavam presentes em cada olhar. Todos homens brancos e héteros. Não haviam negros. Não haviam mulheres. A diversidade era representada entre homens brancos e paredes brancas e frias de metal. Não tive como não pensar na morte de João Pedro, alvejado por policiais pelas costas, no Rio de Janeiro. Em George Floyd, asfixiado covardemente pela polícia em Minneapolis, nos Estados Unidos. Não tive como não pensar em tantos outros que perderam suas vidas e sequer foram lembrados. Parece que o potencial de realização da humanidade demonstrado na transmissão a partir da união de suas forças, é um devaneio lisérgico de quem acredita nas promessas de campanha de seu político de estimação.

Por outro lado, a angústia de uma vida sufocada pela opressão, serviu de combustível para a explosão de um movimento em protesto contra a violência policial nos Estados Unidos. A ignição foi a morte de George Floyd, mas, hoje, os protestos não se restringem mais à Minneapolis e se espalharam por todo território Norte-americano

Nesse sentido, me parece haver algo jocoso nessa história toda. Nossas noções de identidade podem servir para dominar ou para resistir. Nossas acepções sobre território podem nos limitar ou nos expandir. A violência que esmaga e oprime é a mesma que luta por liberdade e justiça. O ar de superioridade do olhar de cima para baixo, é o mesmo que desaparece para quem estende a mão. No final das contas, somos todos cosmonautas solitários na imensidão do vazio de nossas almas, e as fronteiras que traçamos são cicatrizes abertas prestes a serem compartilhadas.


Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco, Museu de Arte Murilo Mendes e é fundador da Bodoque Artes e ofícios e da Revista Trama.


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