Fetiche

E estava em pé entre mortos e vivos.
Números 16:48

Vistas de cima, as pessoas que caminham pelas ruas de qualquer lugar dão a ideia de hemácias que se movem, em pulsações, espremidas por veias e artérias, dando viscosidade ao sangue. Seres humanos, igualmente, fazem visco no mundo, têm ritmo próprio, são expulsos pela batida dos corações metafóricos e concretos de seus corpos e habitats. Eis a vida. Surge contra expectativas, se distende ao revés da razoabilidade e, quando se consente em ir de si mesma, descarta um corpo inerte. Para lidar com isso, movem-se as coisas e os pensamentos.

As grandes cidades, porém, com milhões de habitantes, não se suportam o tempo todo nesse frenesi de ir e vir. Uma possível alternativa para aliviar a tensão está em diminuir a velocidade. Os bairros servem a essa função; são também cidades, só que menores, mais lentas. Ali se conhece o dono da quitanda ou o frentista do posto. É onde fica mais fácil conversar com a baiana que vende acarajé ou comprar pão, mesmo tendo esquecido alguns centavos e a conta não fechando. Já foi melhor, mas ainda hoje o Grajaú é assim: uma cidadezinha pequena de pessoas minimamente conhecidas dentro da grande e selvagem capital fluminense. Lá, por instantes, as coisas são o que são. Esse mistério da vida banal nunca parece claro o suficiente.

É comum comer fora aos domingos. O vozerio do trânsito diminui a gritaria dos motores de ônibus e carros, camas elásticas são montadas na pracinha, e de tempos em tempos, a feira da Anitcha termina por incentivar que se saia à rua. O almoço é o clímax do meio dia. Depois dele, as pessoas voltam para casa, para o futebol, para um livro que estejam lendo. Às vezes tudo isso tem feições de um ritual.

Numa cantina de massas bem simples, transbordando de famílias que pediam seus pratos a garçons dispostos porém desatentos, entrou Gabriele, sozinha. Muitas mesas. O barulho festivo substitui o barulho da luta. A voz das pessoas contando as mesmas histórias de sempre fala mais alto.

Não é fácil conseguir mesa para um quando o lugar está cheio. O espaço ocupado por uma pessoa, tecnicamente, poderia ser ocupado por duas ou três, talvez quatro, e quantidade significa consumo. Mesmo assim, Gabriele conseguiu uma mesa no fundo do salão, próxima ao banheiro. Escolheu o prato, que o garçom atarracado anotou num picoto de papel com letras que só ele e as pessoas da cozinha entenderiam. Enquanto a comida fosse preparada, e tudo levava a crer que demoraria, pediu uma cerveja forte. Encheu o copo estilo tulipa, onde estava gravada a marca cervejeira, apoiou o ombro contra a parede e, por alguns segundos, fechou os olhos.

O revestimento de madeira modesto dava ao restaurante um ar minimamente requintado, e o papel de parede vermelho com alguns arabescos de cor mais escura faziam destacar os retratos de família do dono do estabelecimento. Na outra ponta, perpendicular ao caixa, estavam alguns quadros com poses de futebol onde se via a seleção brasileira de 1970 em destaque, com a fotografia já amarelada pelo tempo. Em linhas gerais, era um boteco comum, sem exageros, tipicamente familiar. Ser familiar era uma navalha na carne, naquele domingo. Porém, existem motivos obscuros que fazem com que o coração crie dores de estimação. Elas não machucam menos, mas conferem a quem sente uma espécie de elegância estoica, capaz de cavar fossos em torno dos olhos e tracejar a testa com aquilo que é chamado maturidade.

Deu um gole na cerveja e voltou a colocar o copo sobre a mesa de mármore, daquelas antigas. Pegou o celular para conferir algumas mensagens, reabrir conversas mal terminadas pelo whatsapp pela enésima vez e visitar perfis no Instagram. Isso se tornava um procedimento padrão em 2019 para quase todos os que nasceram depois de 1985. Nada excessivo. Feito isso, virou a tela do aparelho para baixo, abriu a bolsa e pegou um pequeno saco de veludo, de onde retirou uma pulseira com pedrinhas escuras e correntes prateadas. O item estava bastante fora de moda, diria-se que alguém tinha usado por muito tempo e depois parou, seja porque perdeu ou porque enjoou. Talvez fosse um presente ou a lembrança do relacionamento findo. Naquele momento, quase não se reparava que Gabriele fazia essas coisas, e quem reparasse não conseguiria entender.

Não colocou a pulseira em si mesma. Chegou a garrafa para a direita na mesa e o copo também. O celular continuou virado para baixo. Em cima do aparelho, ela fez uma espécie de almofada com o saquinho de pano e, sobre ele, arrumou a correntinha como se estivesse no mostruário de uma joalheria. Quando ficou pronto, esboçou um sorriso discreto no canto da boca – muito belo por sinal. Com a pele clara e os cabelos negros encaracolados, o sorriso foi capaz de fazer luz no rosto de um jeito espontaneamente desarmado, entregue. Aquela fresta, que não chegava a mostrar os dentes de Gabriele, foi um portal que, uma vez trespassado, esvaziava subitamente o lugar, restando apenas ela, o copo, a mesa e a bijouteria.

Apoiou, então, os dois cotovelos na mesa e afundou o queixo sobre eles, enquanto os olhos iam longe. Um dos garçons, que já trabalhava há trinta anos na função, a notou: deve estar apaixonada. A mulher que se levantava para ir ao banheiro e passou pela mesa-universo sacudiu a cabeça com sinal de desaprovação, como se estivesse ressentida pela moça ter sido abandonada e por isso ficar assim, no mundo da lua. Tão jovem, deveria estar aproveitando a vida. Poucos notavam Gabriele, é verdade; mas quando notavam, sentiam pena: um misto de angústia de si com angústia do outro. Não que estivessem eles mesmos plenamente felizes, mas existe uma espécie de solidariedade que une o que é da condição humana, e faz com que notar a dor de outros alivie de alguma maneira a dor de mim. Um enigma fantástico, mais instigante do que aquele sobre o ser humano ser um animal de leis ou não; afinal, nem tudo parece ser fruto das leis.

O prato chegou. Massa de abobrinha com molho pesto. Comum, mas lindo! O microcosmo foi rearranjado, porém sem desfazer o trono sobre o celular. Entre uma garfada e outra, a olhadela na direção do fetiche, discreta, constante. Qualquer coisa naquele cantinho lhe fazia companhia. Comeu rápido, como se come rápido hoje em dia, pediu um café expresso. Nessa altura, já eram quase dezesseis horas, e o restaurante tinha bem menos gente – e menos barulho também. Aos poucos foi voltando a si, percebeu os restos de comida sobre as mesas que eram retirados pelos funcionários e viu na TV, que agora conseguia escutar, os comentários eletrizados sobre a final da Copa Libertadores. Mais um domingo comum e quente no Rio de Janeiro. Ainda ficou alguns minutos namorando a pulseira, que apertou dentro da mão direita na altura do peito antes de voltar com ela para o veludo.

Desta vez, enquanto afrouxava o cadarço que fechava o embrulho, uma pequena etiqueta despontou. Escrito com caneta azul era possível ler um nome, Marinete. Depois de recolocar a bijuteria no lugar, escondeu a etiqueta. Voltou com o saquinho para bolsa, desvirou o celular e fez o mesmo ritual de conferência das redes sociais. Pediu a conta, pagou com cartão, no débito. Foi ao banheiro e saiu. Quando já estava na rua, o garçom que retirava sua mesa pensou quase sem pensar, nesses desabafos que a mente faz para si mesma quando é confrontada com as coisas da vida. Coitada.

Gabriele esperava seu ônibus para a Tijuca. Estava feliz. Mais um ano passou e ela estava conseguindo vencer, seja lá o que isso significasse. Não era de tantos amigos para poder dividir. Vivia sozinha no Rio de Janeiro depois que a mãe faleceu, mas de tempos em tempos almoçava com ela em pequenas cantinas por aí. A mãe adorava massas, e com certeza deve ter gostado de mais aquele almoço de domingo comum.


Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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