A solidão e o processo de construção artística no Brasil

“Parece que aprenderíamos algo acerca da arte se intuíssemos o que a
palavra solidão pretende designar. Tem-se abusado muito dessa palavra.
Entretanto, o que é que significa “estar só”? Quando é que se está só?
Formular essas interrogações não deve somente levar-nos a opiniões
patéticas. A solidão, ao nível do mundo, é uma ferida sobre a qual não cabe
aqui tecer comentários” BLANCHOT, Maurice.

Estar só é estar partilhando com parte do mundo uma angústia única e, ao
mesmo tempo, plural. Na solidão, produzimos e apresentamos ao mundo novas
formas de estabelecer uma ligação com nossos sujeitos. De nós para nós mesmos,
de nós para-o-mundo. Estabelecer algo é dar um ponto de partida para uma criação
sem fim e essa é a possibilidade de (re)conhecimento na solidão do mundo: poder
lançar ao mundo uma criação que possa ser resgatada, usufruída e potencializada
por outros sujeitos. Nessa solidão partilhada, encontra-se a arte, a cultura e toda a
produção fomentadora de uma cadeia tão pulsante e convicta que sustenta famílias,
mesas, ouvidos, olhos e corações. A arte é a minha apresentação ao mundo, o que
existe atrás de mim, minha mais pura revelação.

O artista, quando cria, enuncia um rompimento com o mundo que conhece.
Essa ação de revolta com o mundo que o moldou, que o recebeu sem sua
permissão, é a chave para uma revolta interna, uma solidão construtiva, um elo
entre a vala seca da produção e o longínquo sol que enuncia a instância de um
novo potencial produtivo e revigorante. Colocar-se nesse ato de revolta com o
mundo é colocar-se fora da história onde prevalece aquela velha máxima olhar para
fora da bolha. Enquanto eu produzo na solidão, me distancio de uma história para
possibilitar a construção de algo novo, nessa conversa subjetiva que acabo criando.
Não posso limitar a discussão sobre ser-na-solidão sem perpassar
discussões para além dos campos plurais e produtivos da arte brasileira, tão ricos e
construtivos na nossa sociedade. O segmento da música, por exemplo, na canção
Solidão, de Alceu Valença, nos revela “A solidão é fera; é amiga das horas; é prima-
irmã do tempo; e faz nossos relógios caminharem lentos; causando um
descompasso no meu coração.” A dor na solidão é potencial de construção no
tempo, por mais lento que seja. A dor que o artista sente é a que flagela e ao
mesma a que afaga.

Outro artista que provoca a conversa sobre a dor da solidão é Gilberto Gil. Na
música Dança da Solidão, escreve Solidão é lava; que cobre tudo; amargura em
minha boca; sorri seus dentes de chumbo […] quando vem a madrugada; meu
pensamento vagueia; corro os dedos na viola; contemplando a lua cheia. É
inevitável deixar de caminhar pelos campos tempestuosos na solidão sem levar
adiante um movimento que contempla, logo, o artista refaz o mundo por sua conta,
como nos revela Albert Camus em O Homem Revoltado.
Enquanto isso, tratando de um embate da classe artística com a
governabilidade brasileiro, o campo tempestuoso no qual o artista precisa trafegar é
abarcado por sujeitos que tentando recontar, por veias fixadas no amargor de uma
tradição nefasta, perspectivas passadas que interferem nos processos de criação e
(re)apresentação dos sujeitos que fomentam as cadeias artísticas do nosso meio.
Fixar, estruturar, tradição. A (in)segurança do conservadorismo tradicional
interrompe a busca pela alçada à um lugar que o sujeito artístico tanto anseia, e
provoca um totalitarismo contra uma revolta coletiva.
Estar presente na busca pela instância não é fixar um lugar, mas construir
traços e laços de progressão para que os moldes sejam reestruturados, reescritos,
reutilizados, (re)imaginados. Por isso o artista é (in)diferente, quando solitário é.
Esse constante vir-a-ser demonstra a clareza multifacetada do sujeito.
A produção, entretanto, é lenta e a clareza anseia em ser coberta pelo
obscurecimento à essa clareza. Em tempos introspectivos, até mesmo para
estabelecer nossas conversas subjetivas, o algoz maior se torna nós mesmos, muito
por conta de uma interferência exterior, das mazelas que a classe sofre diante das
qualidades de trabalho e oferta na produção (produção essa incessante, dolorosa e
sofrida). Deixar levar-se pela história é afastar a luminescência dos seus pares
quando o que está em jogo é estabelecer-se nesse tempo para contrapor o que aí
está, que não nos é frutífero e/ou eficaz.
A revelação subjetiva em meio ao absurdo da existência, aquela que provoca
a intersubjetividade entre os sujeitos que compactuam com as mesmas crises, é o
que provoca nossos laços criativos, nossas potenciais angústias, mesmo que
introspectivos, para uma criação sem fim, interminável e revigorante.


André Rodrigues da Silva é mestre em Educação, cursou Filosofia e estuda Letras – redação e revisão de textos pela UFPel. Lê Camus, admira filmes do expressionismo alemão e gosta de Benito. Um peregrino


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