Role a pedra, Prometeu

Eram duas e quarenta e nove da manhã quando abriu os olhos. Estendeu a mão para o chão, na direção da cabeceira da cama, para alcançar o celular e conferir se alguém tinha ligado ou enviado mensagem. O claro forte da tela no escuro do quarto fez com que apertasse os olhos e, aos poucos, fosse vendo sem que as coisas parecessem embaçadas. Nenhum registro de chamadas, nenhuma mensagem. Como já tivesse acordado, resolveu levantar e beber um pouco de água; cambaleou no breu primeiro entre o quarto e a cozinha e depois de volta. O celular continuava na mão sem um motivo consciente específico, mas sentia que caso o deixasse longe, por pouco tempo que fosse, alguém poderia ligar.

Sentado na cama, olhou a parede em frente, onde havia colocado a televisão alguns meses antes. Naquele momento, a luz difusa do poste que entrava pela janela era amarelada o suficiente para se refletir na tela da TV e captar um simulacro da sua própria imagem. Distorcido, com a cabeça na forma de uma chama de vela, percebeu que o seu duplo fazia movimentos engraçados quando ele se movia. Eram contorções psicodélicas que esticavam seu rosto ou o engordavam, caso olhasse para cima ou para a direita. Ficou assim, brincando com o reflexo por algum tempo, até que a graça se foi. No meio da madrugada, ele se sentia muito solitário.

Deixando o celular ao lado da sua coxa, recostou-se na parede e começou a se lembrar do dia anterior. Aquele tinha sido um dia cansativo. Acordou cedo para ter tempo de se arrumar com calma – o que não serviu exatamente para isso, já que se atrasou do mesmo jeito. Preparou rapidamente o café bem forte que bebeu sem açúcar, ao mesmo tempo que mastigava duas torradas secas. Morava sozinho, e por isso deixou a mesa por arrumar. Enquanto saía, arrancou uma banana do cacho, descascou e começou a mastigar junto com a chave passada na porta. Eram seis e vinte quando chegou no ponto do ônibus. Deveria estar no trabalho às oito.

Uma quarta-feira agitada, como costumavam ser os dias em uma lanchonete na beirada da rua. Os clientes eram, na sua maioria, insatisfeitos com a vida e especialistas em fazer com que os funcionários soubessem claramente disso. Tinha ficado de pé, no caixa, das oito até às dezoito, tendo duas horas de almoço e mais dois pequenos intervalos no meio da tarde. Era início de mês, e o movimento aumentava sensivelmente naqueles dias que casavam com a data das folhas de pagamentos do funcionalismo público. Talvez tivessem passado por ele, naquela quarta-feira, mais de mil pessoas. A maioria delas era completamente esquecível: estavam imersas demais no clichê da normalidade cotidiana; apressadas, olhavam para o chão, mexiam no celular – ele não podia fazer o mesmo durante o expediente. Se lembrava, porém,  de alguns clientes especiais, dentre eles o “seu” Raimundo, um policial militar aposentado que ia todos os dias na lanchonete, de manhã e no final da tarde, para tomar seu café – que exigia fosse servido em um copo americano. Sempre que chegava, ele mexia com as meninas do balcão e logo acenava com a mão para o caixa, como se fizesse um gesto de alegria estalando o indicador da mão direita sobre o dedo médio e o polegar, seguido do cumprimento “Tudo na paz, meu garoto?”. Quando estava animado, bebia o café e passava horas contando histórias de quando serviu no batalhão de Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, onde dirigia a viatura da rádio patrulha. Seu Raimundo era magro e tinha a pele levemente morena, com um bigode que ficou grisalho antes do cabelo. No meio das histórias que contava, repetia fatalmente uma ou outra, e às vezes mudava os desfechos, mas isso importava menos do que contar. 

Além daquilo, o dia foi só mais uma edição do clássico role a pedra. Abriu o caixa, registrou as vendas, fechou o caixa, conferiu mercadorias, organizou reposição. O horário de ir embora chegou, e ele terminou ficando ainda mais trinta minutos preso na resolução de um pequeno problema com a máquina de cortar mussarela. Repetindo o trajeto da manhã, foi para o ponto de ônibus tomar nova condução lotada. Chegou em casa eram oito e quinze na noite. Tomou banho, comeu mexido de ovos e presunto, pegou uma edição de Frankenstein, de Mary Shelley (que estava lendo há mais de um mês), e descansou no sofá.

Desde que entrou em casa, o celular permaneceu nas suas mãos. Conferia e reconferia as redes sociais, sem saber exatamente o que procurava. Na verdade, pode ser que soubesse: ele sentia falta de companhia. Tinha namorado algumas vezes, mas nos últimos tempos, – fosse pela pressão da crise que ameaçava fazer com que perdesse o emprego toda semana ou pela saudade em que mergulhou depois da morte da sua mãe dois anos antes -, o fato é que ficava pesado demais continuar sozinho; mas ele parecia não conseguir fazer qualquer coisa sobre isso. Além do mais, se sentia tímido, introspectivo e sem atrativos para outras pessoa. Quase não saía de casa. Gostava de ler, tinha vontade de um dia se formar em alguma coisa que envolvesse leitura, mas não poderia fazer assim enquanto precisasse trabalhar. Vivia no apartamento que era da mãe, o que o aliviava do aluguel; mas mesmo assim, o dinheiro era contado.

Quase às quatro da manhã, ele repassava não só mais o dia, mas sua vida como um todo. Como acontece a todo rapaz que começa a deixar de ser menino para começar a ser adulto, ele se perguntava o porquê do ônibus, do trabalho, da solidão, do celular. A casa parecia estranha, a cama parecia estranha, ele mesmo não agia como se estivesse normal. Alguém ligaria para ele? Além da irmã que vivia em São Paulo, mais quem tinha o seu número? Não adiantava esperar mais. Tentou se lembrar dos amigos da infância, mas foi em vão; sua memória só resgatou crianças brincando no pátio do colégio estadual. Quando cresceu, foi como se afunilasse a vida: nasceu muitos, cresceu um só.

Essas coisas todas passavam por sua cabeça com rapidez, e ele sentiu medo do que poderia fazer. Teve vontade de se matar e pensou em pular da janela; como vivia no segundo andar, porém, calculou que a queda não levaria à morte, só causaria escândalo. Não costumava tomar remédios, então não os tinha disponíveis. Também descartou a possibilidade de cortar os pulsos, por imaginar que não teria coragem. Na medida em que ia anulando as alternativas de que dispunha para deixar de existir, sua angústia aumentou e ficou tão grande que, encostado na parede como estava, levou as mãos no rosto como a criança que sente vergonha e chorou. Se alguém perguntasse porque exatamente chorava, ele não saberia dizer. Mas alguma coisa se movia com tanta força por debaixo da pele e aquecia seus rins numa mistura de calor e friagem que era como se seu espírito se condensasse na região mais alta da cabeça e chovesse pelos olhos. Fazia barulho, soluçava, se engasgava e, quando parecia que ia parar, era como se um pêndulo voltasse a se movimentar recomeçando o ciclo. Deve ter ficado assim por mais de uma hora, porque quando adormeceu, o dia já estava clareando. Não foi trabalhar na quinta-feira; mandou uma mensagem ao dono da loja e disse que estava com febre. Caso quisesse, poderia descontar o dia.

Acordou ainda melancólico, mas no fundo desse temporal existia um ponta de alegria. A princípio, teve pudor de notar que era assim; mas na medida em que o dia passava, foi perdendo a reserva de si. A vida que levava, o ônibus, o trabalho, as horas-extras, tornar-se nomofóbico, nada disso fazia o menor sentido. Talvez o Seu Raimundo fizesse, mas o resto não. Riu de si mesmo e da existência que repetia, irracional, há anos. Quando pensou assim, riu mais ainda. Até aquela madrugada, sofria porque não sabia qual seria o sentido das coisas. Depois de chorar toda a noite, percebeu que as coisas não tinham sentido algum. Para muitos, isso seria um fim tenebroso; mas para ele, não. Não ter um sentido específico, quer fosse o céu ou a riqueza, o diploma ou filhos, significava transitar por todos eles. Fazer o que se faz por escolha é muito diferente de fazer o que se faz por compulsão.

Na sexta-feira, ele voltou ao trabalho normalmente. Mesma rotina. Prestou mais atenção no Seu Raimundo. Em casa, terminou Mary Shelley e decidiu que faria uma conta no Tinder.


Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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