O ordinário é o novo extraordinário.
Quão relevante você pensou que fosse a vida do caixa operador da mercearia da Dona Rute aí na sua rua?
Em tempos de pandemia e de crises econômicas e políticas, o ordinário se prova extraordinário, mais uma vez.
No início da Pandemia, o Google colocou imagens agradecendo ao trabalho de pessoas dos setores de alimentação (em toda a sua trajetória da produção até as prateleiras), da saúde e da educação.
Mas desses três, dois acabam tendo maior destaque – a saúde e a educação -, mesmo que ambos também sofram com o descaso e uma certa desvalorização por parte dos governantes.
O que me motiva a escrever este texto, em uma pandemia, comemorando um ano de uma revista que mudou a minha vida, é o repositor das gôndolas do mercado, o prestador de serviços gerais que mantém a solução de cloro no tapete para que você possa acessar o estabelecimento com maior segurança.
Esse texto é de certa forma, uma homenagem aos meus colegas de trabalho e aos demais que vivem de modo extraordinário, pois vivem extraordinariamente no ordinário.
Eu tenho uma memória de quando fui trabalhar no supermercado; muito discurso de que isso não era o que estava relacionado à minha capacidade ou formação. Eu digo algo: quem aqui consegue trabalhar na sua formação?!
Poucos.
Mas este é um ponto.
O que eu quero ressaltar brevemente é a dualidade entre o essencial e o supérfluo tido como essencial por algumas pessoas.
A precarização do trabalho.
As histórias nos livros e filmes apresentam sempre o herói surgindo de uma tragédia, de um momento de desilusão, escassez. O herói vem como um baluarte de esperança de que se pode viver algo melhor, mais justo, em algum momento.
Enquanto hospitais, mercados e farmácias resistem – às vezes aos trancos e barrancos – para cuidar de seus funcionários e atender com segurança aos seus clientes, outras pessoas insistem em negar a periculosidade do vírus que nos aprisiona em nosso próprio canto de paz, refúgio em meio ao caos, nossas casas.
O que é essencial é a satisfação de nossos desejos, nossos delírios e o exercício do poder que tenho conquistado graças a estabilidade financeira que alcancei – Deixo claro que eu, o autor deste texto, estou longe de afirmar este parágrafo, mas vejo isso navegando pelas redes – ou seja, o essencial é que quem tem a possibilidade, continue dando festas, se reunindo com os amigos, fazendo churrasco e indo em seus bares favoritos que estão reabrindo, pois:
“ a queda da economia vai
matar mais do que essa
gripezinha ”
– síntese minha diante das ações do governo.
Verdade seja dita, a pandemia revelou mais sobre o quão destruída nossa sociedade está, e o quão sombrio é de fato o nosso futuro.
Mas isso não é o fim, parafraseando uma banda muito boa, porque “o fim é o começo”.
Talvez o fim de uma er seja o despertar de um novo senso de pertencimento, de cumplicidade, de compaixão. Afinal, o mundo está acabando, e ainda vemos gestos nobres de uns para com os outros, que nos despertam para um novo começo.
Vislumbrando a queda de estátuas que marcam opressores da história, exploradores das vidas inocentes, vemos “empresários de sucesso” se portando como abutres, justificando trabalho em meio a uma crise global de saúde.
A arte sobreviveu e contou histórias sobre resistência, dor e amor.
A resistência natural da vida diante das adversidades me remete a memória como a força que impulsiona a humanidade a se reinventar.
A memória nos ensina que não podemos colocar a mão no fogo ou na tomada; que não podemos nos entregar a algumas vontades porque essas mesmas vontades nos fizeram sofrer no passado.
A memória é extremamente importante.
Mas ela tem sido reprogramada, quando passa a ver números e não pessoas, ou quando olhamos comércios essenciais e não agradecemos ao sacrifício daqueles que estão ali se arriscando, se expondo.
Veja essa situação: o seu vizinho deu festa a quarentena inteira, saiu sem máscara e só colocou a máscara pra entrar no mercado e passar o cartão ou dar dinheiro pra levar os mantimentos da próxima festa. O contágio está ali, o problema está ali.
Quando a nossa memória deixa de ver um indivíduo e passa a ver números, ou mesmo não ver número nenhum, nós nos tornamos cúmplices da morte, do esquecimento, da opressão.
A memória de hoje que construo é a de pessoas, humanas, gente como você, que se coloca à disposição do combate a esse vírus, às vezes voluntariamente, outras vezes porque o seu trabalho é essencial para a sociedade.
A memória é dos que já morreram, na linha de frente, na porta da frente, na calçada do lado, e daqueles soldados desconhecidos lutando por igualdade e dignidade.
A memória é que esse vírus nos lembrou o que a tecnologia nos reprime constantemente; nos tornamos insensíveis quando mergulhamos nas relações tecnológicas: elas simulam, mas não são.
Insensíveis como no filme Equilibrium, onde a emoção é a causa da guerra, mas a ausência dela é a origem da morte do diferente, do inusitado, da surpresa, da aleatoriedade. A ausência de sentimento é a morte da vida.
Hoje então, com 50 edições, eu fico refletindo no tipo de memória que estou produzindo, e quero dizer: hoje eu quero construir um monumento aos soldados desconhecidos, aos amigos caídos no combate ao Covid (e ao governo fascista).
Hoje, ergo memorial aos mais de 50 mil conhecidos, mas também aos desconhecidos na subnotificação.
Hoje, ergo memorial aos meus amigos nas lojas, aos que estão nos hospitais, aos que protestam. Ergo memorial a vocês, soldados da democracia.
Não desistam. Resistam. Ocupem. Denunciem. Lembrem-se daqueles que estão nos oprimindo e sugando de nós o resto de sanidade e esperança.
Porque a terra não é plana; ela dá voltas. E na volta certa, a justiça recairá sobre os mandantes e seus carrascos.
Kariston França é apaixonado por pizza, e nas horas vagas atua como entusiasta da teologia pública.
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