Quem as via assim, tão de “cara feia” uma com a outra, não imaginava que, poucos meses atrás, tirávamos altas selfies juntas na hora do recreio, com direito a coraçõezinhos e tudo mais. Porém, como nem tudo o que é bom parece durar para sempre, essas minhas duas melhores amigas brigaram. Rompia-se ali o pacto firmado pelas “três mosqueteiras” – era assim que nos chamávamos há uns bons anos.
Até hoje não descobri ao certo o motivo dessa briga. No fatídico dia, não fui à aula, coisa rara de acontecer. Segundo me disseram, não chegou a ser uma briga física, daquelas de travarem na unha ou se descabelarem na frente de todo mundo. Discutiram feio, ou, como dizia minha avó, “arengaram”. E deve ter sido uma “arenga” daquelas…
A partir daí, respirar o mesmo ar passou a ser um verdadeiro desafio para Juliana e Maria. E olha que, naquele tempo, a gente nem ouvia falar desse tal de coronavírus… Pior ficou a minha situação: não estava sendo fácil me equilibrar entre as duas.
Eu era a amiga mais íntima da Maria e, por isso, talvez, tenha me tornado uma espécie de diplomata nas suas confusões com a Juliana. Minha mãe dizia até que eu era a terceira bonequinha daquela estória das três Marias, sabe? A primeira vez em que ouvi falar dessas bonequinhas foi quando as ganhei da minha tia Helena no meu aniversário de sete anos. Estão guardadas, juntas, até hoje, dentro da mesma caixinha, na primeira gaveta do meu guarda-roupa. Lembro-me dela me explicando o sentido da lenda: “As três não podem se separar, ouviu? Porque uma é solidão, duas são confusão e três são a solução.” Levei tudo a sério mesmo: nunca ousei tirar nenhuma delas da caixa.
Num belo dia, semanas após a briga da Juliana e da Maria, o Bruno me chamou num cantinho da quadra da escola e começou com uma conversa de que podíamos organizar uma festa surpresa para comemorar o aniversário da Maria. No começo, fiquei meio assim… Mas, depois, passei a adorar a ideia. Afinal de contas, era nosso último ano de escola. 2016 só Deus sabia como seria…
Organizamos tudo direitinho. Como sempre, elegeram-me a líder do planejamento da festa. Decidi que cada colega levaria uma coisa. E nada de reproduzir aquele velho hábito careta de “meninos levam refrigerante” e “meninas levam doces e salgadinhos!” Meninos e meninas podiam levar o que quisessem, desde que respeitassem a escolha colocada na lista que fizemos. Sendo a “queridinha” da mãe de Maria, logo me incumbi de conversar com ela sobre o local da festa. Também fiz questão de encomendar o bolo para a minha tia, doutora nessa arte que tanto admiro, apesar de não ter herdado nenhum pouco dessa habilidade.
Liguei para a Dona Rose no horário em que Maria estava na aula de natação. “É claro que pode, Roberta! A casa está liberada para vocês todos!” Como sempre, Dona Rose muito gentil, generosa e animada: não hesitou em liberar a casa para o festejo e me prometeu manter segredo. Ela me parecia saudosa de nossas festinhas infantis. Dessa vez, porém, era diferente: permitir que trinta adolescentes se reunissem dentro daquela casa não era para qualquer um. E tinha mais um problema: era a primeira vez em que nosso “trio” se desfizera por conta de alguma briguinha. Seriam as caretices do mundo adulto que nos assombrava ou o ranço de criancice que ainda nos impregnava?
Juliana parecia assistir aos preparativos com indiferença. Se tinha uma coisa que ela sabia fazer muito bem, era mostrar-se por cima da situação, ou como minha mãe sempre diz, “se sentir por cima da carne seca”. Mas, se o orgulho a vencia, nem por isso deixava de transparecer aquela “pontinha” de ciúme disfarçada de pouco caso. Sinceramente, eu não sabia mais o que fazer com aquelas duas. Dessa vez, a coisa parecia mais séria…
Marcamos a festa para um sábado à noite, na casa da Maria. Pedi à Eduarda que a chamasse para tomar um sorvete na pracinha no final da tarde, enquanto arrumávamos a festa. Discreta e habituada a falar pouco, Eduarda era a mais indicada para essa missão. Todos os colegas do terceirão estiveram presentes, com exceção de Juliana, é claro, apesar das minhas insistentes investidas para que ela comparecesse.
Maria voltou da pracinha com a Eduarda por volta das 18:30. Tudo arrumado, combinamos de deixar a luz apagada e a casa em silêncio. Nenhuma ligação pra ela, nenhuma mensagem pelo zap. Gelo total. Nem mesmo uma mensagem sem graça no Facebook. “Eh, Eduarda… Só você mesmo me deu os parabéns… Geral da nossa turma se esqueceu do meu aniversário…”
As duas abrem o portão, sobem a escada e…
“Parabéns pra você, nessa data querida!” Eis que o silêncio se quebrou rapidamente ao abrir da porta. A tristeza e a solidão se converteram, de repente, em alegria, gritos, abraços e beijos.
“Chegou um presente pra você!” Disse Dona Rose.
“Êeeeee! Abre! Abre! Abre!” Gritou a galera.
“Oba! Vamos ver o que é, então?” Alegre, Maria não conseguia se conter de tanta curiosidade. Caixa grande, embrulho bonito. “O presente só podia ser especial.”
Papel rasgado, caixa aberta. Dentro da caixa, outra caixa menor, igualmente embrulhada. Dentro da caixa menor, um pote plástico tampado.
“Que coisa, não!” Angustiou-se a mãe, enquanto a gente só ficava observando em silêncio. O que podia haver dentro daquele pote? Coisa estranha… Ela certamente pensava.
Abre! Não abre! Abre! Não abre! Maria abriu. Ansiosa e angustiada, mas abriu. E a gente não podia acreditar no que viu.
“Bosta de vaca! Eca! Que nojo!” Exclamou Letícia, a mais nojenta da turma.
Era isso mesmo: bosta de vaca. Tá certo que não era daquela fresca e mole. Já estava bem sequinha, a mesma que meu pai chama de esterco e usa para adubar as plantas do jardim lá de casa. Lembro-me das inúmeras vezes em que íamos ao sítio da minha avó buscar esse tal de esterco. Meu pai ensacava tudo direitinho pra não sujar o porta-mala do carro. Taí uma coisa que herdei do meu pai: esse jeito metódico e organizado de ser, que, apesar de me fazer cobrar demais e me deixar ansiosa nos momentos em que a vida me impõe incertezas, mantém meu foco, minha disciplina, meus planejamentos, etc.
O silêncio era geral. Maria não sabia se ficava pálida ou vermelha, se tremia ou ameaçava gritar, chorar ou correr. Talvez quisesse cavar um buraco pra se esconder.
“Calma, filha!Aposto que deve ser alguma brincadeira dos seus colegas… Quem foi o engraçadinho que fez isso, hein?!”
Todos sem graça, ninguém respondeu.
“Ninguém disse nada, mas eu seria capaz de adivinhar o pensamento de todos naquele momento. Certamente, pensaram em silêncio, cada um com seus botões: “Foi a Juliana!”
Acabava de acabar a festa que mal havia começado. Não havia mais clima. Partimos, deixando Maria aos prantos em seu quarto. Imaginei o quanto seria difícil para ela voltar ao colégio na segunda-feira de manhã. Humilhada: era assim que a minha querida amiga se sentia. Não podia ser diferente, é claro.
O domingo foi pesado para Maria, imagino. Mas a segunda seria pior. Deve ser insuportável perceber que você é o centro das atenções e do deboche, dos cochichos no pátio e no corredor da escola. Deus me livre! Se fosse comigo, ficaria pelo menos um mês sem ir à aula.
Mas Maria era forte. Maria resistiu. Mesmo de cabeça baixa e trancada, sozinha, dentro da sala de aula, na hora do recreio, não desistiu de vencer aquela longa semana. Tentei me aproximar, como das outras vezes, mas não funcionou. Preferiu isolar-se.
Passaram-se dias e meses. A poeira abaixou. Havia chegado o aniversário da Juliana. Resolvemos organizar uma surpresa parecida pra ela. No início, a galera ficou meio receosa, lembrando do que havia acontecido com a Maria. Mas fizemos a festa assim mesmo. Fiz questão de encorajar o pessoal. Vida que segue e, mais do que nunca, não podíamos deixar passar a oportunidade de festejarmos juntos. Afinal, era nosso último ano de escola.
Tudo organizado. Todos presentes, exceto Maria.
Para dar aquela enganada na Juliana e conseguir o efeito surpresa que queríamos, a mesma estratégia: sorvete com a Eduarda na praça, retorno pra casa às 18:30, poucas felicitações enviadas pela internet, casa fechada, silêncio, escuro e… “Parabéns pra você…”
Vaidosa e exibida como só ela, Juliana parecia desconfiar que aquela data não passaria em branco. Do jeito que se produziu para tomar um sorvete na praça, já parecia preparada para fazer as melhores selfies com os amigos.
Antes que a decoração estragasse e perdesse toda a harmonia e vivacidade do início da festa, Juliana logo nos chamou para uma selfie atrás do bolo. Não me conformo de terem postado essa foto no Facebook. Saí com uma cara esquisita que só vendo… Fui pega literalmente desprevenida, ansiosa para responder à mensagem que havia acabado de receber pelo Whatsapp.
Partimos para os comes e bebes. A campainha toca. Fui ao banheiro retocar a maquiagem enquanto isso. Ouvi o pai de Juliana abrindo a porta e cumprimentando o rapaz que chegava. Era o motoboy entregando uma surpresa.
“Caixa grande, embrulhada e pesada? Ih! Lá vem chumbo grosso!” Pensaram todos. Mas Juliana se empolgou logo. Antes de tudo, nos convidou para outra foto. Dessa vez, todo mundo ao lado do presente. Em tempo de redes sociais, mais importante do que ganhar presente e ter todos presentes, é mostrar para todo mundo o presente que ganhou. Dessa vez, finalmente, saí bem na foto. Relaxada, descansada e respirando mais aliviada, era hora de curtir a festa.
“Vamos abrir!” Disse Juliana, puxando o primeiro durex do embrulho.
“Não vai ler a mensagem?” Chamei atenção para o envelope escondido na dobra do papel de presente. Dentro do envelope, um cartão sem remetente, com a seguinte mensagem escrita em letra palito: “Parabéns! Faça bom proveito!”
Juliana ficou meio pensativa e paralisada. A dúvida parecia martelar sua cabeça.
“Não vai abrir, Juliana?” Tentei apressá-la.
Juliana rasgava o embrulho, enquanto formávamos um círculo ao seu redor. Finalmente, tomou coragem para abrir a caixa. Dentro da caixa, outra caixa. Dentro dessa outra caixa, outra caixa menor. E as expectativas só aumentavam. Um cheiro abafado começava a sair dali de dentro… Expectativa!
“Rosa! Rosa!” Gritava Juliana.
“Oi! Oi! Estou aqui!” Respondeu a tia de Juliana.
“São rosas! Lindas rosas!” Surpreendeu-se Juliana.
Colado no vaso, outro envelope: “Parabéns, Juliana! Que estas rosas possam alegrá-la nesse dia tão especial! Que a vida te seja fértil, como este esterco foi para esse lindo pé de rosa com que te presenteio nessa nova primavera que se inicia em sua vida. Abraço! Deus te ilumine sempre!” Cartão sem remetente, mensagem escrita em letra de forma.
“Lindas rosas enxertadas, Juliana!” Comentei.
“Enxertadas? O que é isso? Desde quando você entende de rosas, Roberta?!” Juliana me zuou.
“Uai! Sei lá! Desde sempre… Mas, mudando de assunto, que lindo este seu vestido!”
Na segunda-feira, rotina novamente. Escola de manhã. Aula de matemática no primeiro horário. Juliana sorria. Maria não parecia alegre nem triste. Carregava um semblante mais leve, talvez. Mas algo parecia ter mudado entre as duas. Um clima diferente. Olhares desarmados. Finalmente, minha impressão se confirmou: na volta do recreio para a sala de aula, deparei-me com uma cena há muito não vista. Juliana e Maria se abraçavam amigavelmente.
Juliana até hoje não se cansa de agradecer Maria pelas lindas rosas que ganhou. Maria, no entanto, continua negando veementemente a autoria daquele nobre ato. E quanto mais Maria nega, mais intermináveis se mostram a gratidão e os pedidos de desculpa de Juliana.
O fato é que não abro mão de rememorar essa linda estória que nos “re-uniu” e até hoje nos une. Estória que sempre associo àquela música, cujo autor não me lembro o nome, mas que minha tia cantava pra mim como uma verdadeira canção de ninar: “Fica um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas…” Ao som dessa melodia, dormia serenamente, enquanto me despertava para os valores e sentidos do meu existir no mundo. Acredito que, na vida, tão importante quanto “fazer o bem sem ver a quem”, é receber o bem, sem saber de quem.
Atualmente, Maria estuda Artes em São Paulo. Juliana faz moda no Rio. E eu, curso o último período de Letras, na UFJF. Desde que nos formamos no Ensino Médio, uns cinco anos atrás, continuamos estabelecendo contato. A vida meio corrida nos afastou um pouco, é verdade. Mas, especialmente nessa quarentena, não cansamos de nos falar pela internet. Estamos nostálgicas que só vendo… Como era boa a vida de adolescente! E como tudo passou tão rápido, em meio a esterco, espinhos e rosas…
Sérgio Augusto Vicente: sou professor de História e historiador, com bacharelado, licenciatura e mestrado em História pela UFJF. Atualmente, curso doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História, vinculado a mesma universidade. Dedico-me a estudar a história social da cultura no Brasil, trajetórias individuais e de grupos, história intelectual, patrimônio cultural, memória e educação.
Moro em Juiz de Fora (MG), onde trabalho no Museu Mariano Procópio. Contudo, mantenho-me umbilicalmente ligado às origens rurais de minha família, num sítio em Simão Pereira (MG), uma espécie de refúgio localizado à margem de uma estrada de terra que liga ao município vizinho de Belmiro Braga (MG). Sítio que se tornou memória afetiva de várias gerações de minha família, desde que meus tataravós portugueses o compraram em 1910. Sempre que posso, escrevo crônicas e poesias, abrangendo temáticas diversas, como memórias, cotidiano, política, etc.
No ciclismo amador, conecto a necessidade de cuidar da saúde física/mental com todas as áreas de minha vida, a que me dedico com amor e carinho. Entre um passeio ciclístico e outro, inspiro-me em histórias e memórias do cotidiano e paisagens de Juiz de Fora e região. Na página “Diários de bicicleta”, no Facebook, é possível ter acesso a esses registros.
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