Ele não sabia o que fazer com aquela luz intensa ofuscando seus olhos. Mesmo de óculos escuros, não conseguia fixar-se em um ponto sequer no horizonte de seu raio de ação. A única coisa que lhe surgia eram sons que vinham do vizinho, indiscerníveis ainda, pois não conseguia conectá-los, afundá-los em sua mente, criando a harmonia necessária. Sujeitou-se ao caos, às ruínas de sua obscuridade mórbida. Pegou um cigarro amassado do bolso, acendeu-o com certa dificuldade e puxou um grande trago pra dentro de si, aliviando a tempestade interior. Sentou-se num toco de madeira, ao redor de um grande jardim florido, soltando baforadas intermitentes e suavizantes. Abaixou a cabeça, percebendo-se descalço, pisando na grama, remoendo-a entre os dedos. Os sons vieram agora aos ouvidos, invadindo a sua tortuosa alma, sua inquieta percepção sensorial. Dele, podia-se ver tudo: alma, cabelos, cérebro, corpo, troncos, excrementos existenciais rolando da face, respingando na grama amassada pelos pés já serenos. Tudo ali buscava por ele, mas ele mesmo não estava presente, perdido em algum canto de flor, em algum jarro de planta, em alguma pedra digerida pelo tempo, em algum tronco carcomido pela umidade. Fragmentos de outro homem, na melindrosa trilha de formigas que trabalham para a natureza. Ele trabalhava não sabemos para quê ainda, mas, mesmo fragmentado, tinha noção de que não sairia ileso disso, não sairia o mesmo. E não saiu.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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