Segunda Guerra Mundial e a Problemática das Representaçoes

A Segunda Guerra Mundial é um dos eventos que mais marcaram o imaginário de nossa sociedade. Definição máxima da guerra total, ela foi um evento cataclísmico cuja escala de destruição e brutalidade vão muito além da nossa compreensão e transformou completamente as estruturas que sustentavam o mundo até então. Suas consequências foram profundas e ditaram os rumos de boa parte da humanidade na segunda metade do século XX, e ainda hoje seus efeitos reverberam enquanto esse texto é escrito.

Fonte de inspiração para centenas de filmes, jogos e documentários, é um assunto que por vezes parece esgotado. Longe disso, suas representações muitas vezes são problemáticas, recheadas de estereótipos e cujos recortes tendem a interesses específicos. Isso não é novo na História e nem de longe uma exclusividade da Segunda Guerra Mundial; porém, a imagem que se faz desse momento histórico é, talvez, uma das mais marcadas na atualidade.

Por que lembrar mais de tal batalha em detrimento de uma outra? Qual o motivo de um líder político e/ou militar ser taxado como herói enquanto outros caem no ostracismo? As respostas são múltiplas, e não é raro estarem ligadas às perspectivas que as diferentes partes envolvidas consideram como verdadeiras. Ora, cada nação vencedora tem a sua história de como vivenciou a guerra e certamente acredita que sua contribuição foi fundamental para o resultado final (e indiscutivelmente foram, mas não na mesma escala como algumas querem fazer crer), o que torna necessário uma reflexão crítica sobre esses acontecimentos e uma análise mais ampla dos fatos.

Na teoria, isso não deveria ser difícil; mas na prática, é um movimento complexo. Isso se dá justamente pelo fato de que determinadas representações estão enraizadas em nossa mentalidade quando se pensa sobre a guerra e pelas paixões políticas/ideológicas que cercam essa discussão – as quais, não obstante, causam uma certa cegueira em determinados indivíduos cujos ideais muitas vezes os impedem de enxergar a totalidade do processo. Nesse sentido, um dos pontos mais controversos nessa discussão se refere ao papel desempenhado pela União Soviética na derrota do nazifascismo. Dos amantes mais apaixonados do regime socialista – que consideram a atuação da URSS mais importante do que qualquer outro ponto para a queda do Terceiro Reich – a seus detratores mais fanáticos – que minimizam quase que completamente o sucesso soviético e o atribuem a fatores externos (notadamente a ajuda material recebida dos Estados Unidos, e em menor escala, da Inglaterra, para não falar do “general inverno”) -, falar sobre esse assunto tende a gerar extremismos nos quais a noção da realidade deixa muito a desejar. É sobre essa problemática que esse texto busca discorrer, ainda que não tenha a pretensão de tratar da totalidade desse tema que renderia não apenas um, mas uma sequência de artigos.

Ambiguidades Soviéticas

Falar da participação soviética na Segunda Guerra Mundial é um pesadelo para qualquer um que leve a sério o estudo sobre o assunto. Parte integrante da “Grande Coalizão” Aliada, lutando ao lado de nações abertamente antagônicas à sua existência (a partir de 1941) e sendo fundamental para quebrar o ímpeto da Wehrmacht-1 (até então, considerada virtualmente invencível), o regime socialista liderado por Joseph Stalin foi, indiscutivelmente, uma peça chave para a “virada” da guerra a partir de 1942. Certamente, tal importância fornece sólidos argumentos a aqueles que vêem com bons olhos o regime socialista. A icônica cena da bandeira vermelha tremulando no topo do Reichstag com uma Berlim em ruínas ao fundo torna fácil de se esquecer, e por vezes deliberadamente ignorar, que o Exército Vermelho e a Wehrmacht marcharam lado a lado sob uma Polônia dilacerada por interesses não somente alemães, mas também soviéticos, em 1939. É assustadoramente comum ler sobre a “invasão nazista da Polônia”, que oficialmente deu início a guerra (é válido lembrar que na Ásia, o conflito já acontecia desde 1937 na China), e ignorar que tal invasão nazista foi, na verdade, um ataque conjunto e coordenado entre Hitler e Stalin, fruto do inesperado pacto Molotov-Ribbentrop de agosto daquele ano, que uniu, provisoriamente, duas nações declaradamente inimigas. Até certo ponto.

Ao contrário da Primeira Guerra Mundial, na qual ambos os blocos antagônicos eram mais ou menos definidos e pouco se alteraram no decorrer do conflito (com as exceções mais conhecidas da Itália, originalmente aliada a Alemanha e a Áustria que passou a lutar contra as mesmas em 1915, e a retirada da Rússia da guerra após a Revolução em 1917), o segundo conflito trouxe relações diplomáticas um tanto quanto ambíguas, para não dizer contraditórias.

Se olharmos para 1939, data oficial do início do conflito, constatamos claramente a existência de três nações agressoras. A Alemanha, certamente, vinha tomando medidas cada vez mais arriscadas no xadrez geopolítico europeu, culminando com a anexação da Áustria em 1938 e o desmembramento e posterior ocupação completa da Tchecoslováquia em 1939. O regime nazista tinha claras intenções belicistas e era perceptível, para um observador mais atento, que Hitler não pararia de reivindicar novos territórios, inevitavelmente caminhando para a guerra.

Na Ásia, o Japão, que havia se consolidado como uma potência imperialista ao longo das primeiras décadas do século XX, travava uma guerra aberta contra uma caótica China -que, paralelamente, vivia uma sangrenta guerra civil. A invasão japonesa em 1937 era o resultado de um conjunto de ações agressoras por parte do império do sol nascente naquela região que se iniciou com a invasão da Manchúria e o estabelecimento de um Estado fantoche em 1931.

A terceira nação agressora em 1939 era ninguém menos que a União Soviética. Além de um conflito de fronteira – limitado, mas sangrento – travado nos confins da Mongólia contra o Japão desde meados de 1938 (cujas consequências serão duradouras, apesar do relativo esquecimento em relação a tal evento), o Exército Vermelho marchou sob a Finlândia em novembro de 1939 numa guerra não provocada com interesses abertamente expansionistas – mas que, apesar de tratado à parte do conflito mundial, está intrinsecamente ligado a ele. As consequências da “Guerra de Inverno”, como ficou conhecida, são diversas. Primeiro porque atuação das forças soviéticas, recém modernizadas e mecanizadas, lutando contra um inimigo inferior em número e equipamentos, foi no mínimo desastrosa. As baixas sofridas foram desproporcionalmente altas e eram consequência direta dos expurgos stalinistas ocorridos em 1938 – que resultaram no aprisionamento e fuzilamento dos mais notáveis comandantes militares do Exército Vermelho (alguns sobreviventes seriam libertados e reinseridos no comando após a invasão nazista em 1941 e as desastradas intervenções de Stalin nas decisões militares), os quais foram substituídos por oficiais além de inexperientes, incompetentes. Isso reforçou a percepção que as potências europeias tinham a respeito do Exército Vermelho enquanto uma força numerosa, mas ineficiente, e alimentou as fantasias de Hitler de vencer a URSS em semanas, tempos depois. Essa subestimação grosseira provou ser fatal ao Terceiro Reich.

Além disso, cogitou-se entre os Aliados (nesse momento, leia-se França e Inglaterra) o envio de uma força expedicionária para combater os ​soviéticos n​a Escandinávia, ainda que tais nações ​não estivessem em guerra contra a URSS e, sim, com a Alemanha​. Isso ajuda a ilustrar bem a corda bamba que é tratar dos blocos e das relações diplomáticas na fase inicial da guerra. O ataque à Finlândia não é o único exemplo da agressão soviética. Em meados de 1940, Stalin anexou à URSS os países bálticos (Estônia, Lituânia e Letónia) e também a região da Bessarábia e partes da Bucovina, pertencentes à Romênia – todos territórios anteriormente sob domínio do Império Czarista. No mesmo período, a economia soviética foi responsável por enviar substanciais quantidades de recursos e materiais que alimentaram a máquina de guerra alemã durante a ​Blitzkrieg-2, ​resultando em vitoriosas campanhas naquele ano.

Frente a isso, é perceptível que essa aproximação entre campos ideológicos extremamente antagônicos é fruto do oportunismo de ambas as partes e, estruturalmente, não eliminava a desconfiança mútua que iria culminar, em junho de 1941, na eclosão da maior, mais sangrenta, genocida e não menos decisiva frente de toda a guerra.

Sequelas da Guerra Fria: Os recortes e as (In)compreensões

Nos 45 anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial, a humanidade viveu a Guerra Fria – a qual opôs sistemas políticos, econômicos e ideológicos em virtualmente todos os aspectos da sociedade. Um dos seus maiores campos de batalha foi, sem dúvida, a propaganda; através dela, ambas as partes atuaram com excelência na construção de representações e idealizações que favorecessem seus respectivos blocos. O conflito entre capitalismo e socialismo – sintetizado em seus maiores representantes, os Estados Unidos e a União Soviética – alterou as estruturas geopolíticas, econômicas e sociais da segunda metade do século XX, deixando marcas muito visíveis na atualidade. E num contexto desses, claro, a luta pela memória também foi acirrada; afinal, tais nações foram, de longe, as duas mais importantes para o resultado final da Segunda Guerra Mundial. De um lado, a valorização – e por que não, a superestimação – das ações de uma; do outro, a diminuição do papel da outra e a criação de justificativas para seu sucesso.

Afinal, quem nunca ouviu falar do Dia D? Maior operação anfíbia de todos os tempos, reunindo uma frota com milhares de navios, lanchas de desembarque, mais de 12 mil aeronaves? Um louvável feito logístico, presente em praticamente todos os jogos sobre a guerra e pano de fundo para diversos filmes que mostram o heroísmo daqueles que participaram da “libertação” da França em 1944. O quanto tal evento teria sido importante para a derrota nazista? Sem dúvidas, a Operação Overlord foi um dos pontos altos de toda a guerra e consistiu em abertura efetiva de uma segunda frente de combate na Europa, tornando possível o fim da guerra em maio de 1945; porém, sua representação não condiz exatamente com a realidade. E esse não é o único exemplo.

Primeiro problema: seja em jogos ou em filmes, o Dia D é representado pelos desembarques das forças norte americanas na praia de Omaha, onde a resistência alemã foi tenaz e transformou o desembarque num abatedouro humano. De fato, os feitos para quebrar a resistência naquele setor foram notáveis; porém, Omaha era uma das cinco praias-alvo da operação, e o banho de sangue ocorrido ali não se repetiu nas demais praias – onde os desembarques ocorreram sem grande problemas (no outro setor designado aos EUA, a praia “Utah”, por exemplo, somaram apenas 197 baixas durante a invasão). De fato, as baixas somadas das demais praias mal chegam ao número de mortos e feridos em Omaha; ou seja: a épica batalha do Dia D que vimos nas primeiras cenas de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998) foi limitada a um setor específico, numa exceção à regra do que ocorreu naquele dia – ainda que seja automático pensar o oposto exatamente pela maneira como esse recorte é explorado e chega ao público geral. Isso certamente não diminui os méritos dessa operação que superou desafios imensos em todos os sentidos e obteve êxitos notáveis, notadamente nos desafios logísticos imensos e no sucesso da contra-inteligência aliada na preparação para a invasão; mas ainda assim.

Segundo, o avanço dos Aliados Ocidentais foi extremamente vagaroso nos meses seguintes (principalmente devido a imensa dificuldade de abastecimento das tropas) e, ainda que tenham conquistado vitórias importantes (notadamente no Cerco de Falaise, onde metade das forças combatentes alemãs foram capturadas) e a expulsão da Wehrmacht do território francês, seria somente a partir de março de 1945 que teria início efetivo a invasão da Alemanha pelo oeste. Naquela altura, o Exército Vermelho já se aproximava rapidamente de Berlim.

Por outro lado, quantos de nós já ouvimos falar da “Operação Bagration”, desencadeada em 22 de junho de 1944, duas semanas após o Dia D e que causou o colapso de todo o sistema defensivo da Wehrmacht no Leste? Poucos, com certeza. Tal ataque, um dos maiores orquestrados em toda a guerra, expulsou completamente os alemães do território soviético e os levou diretamente para Varsóvia, deixando as fronteiras do Reich ao alcance de uma invasão. Segundo Ian Kershaw:

“Do ponto de vista alemão, as dimensões dessa calamidade quase não poderiam ser exageradas. Em 150 dias, entre mortos, feridos ou desaparecidos, as forças alemãs no leste perderam mais de 1 milhão de homens — 700 mil deles desde agosto (…) Em relação às perdas humanas, o desastre no front oriental ocorrido no verão de 1944​ era de longe a pior catástrofe militar na história da Alemanha​, com resultados ainda mais infelizes que os da carnificina de Verdun na Primeira Guerra Mundial e perdas muito acima das registradas em Stalingrado”

Ou seja, do ponto de vista militar, os eventos de junho de 1944 no ​leste​ causaram, de longe, muito mais impacto para o rápido colapso do que restava do sistema defensivo alemão (já em grandes dificuldades naquela frente desde 1943) do que os desembarques na Normandia. A Operação Bagration foi fundamental para estabelecer as bases para o avanço final do Exército Vermelho – desencadeado em janeiro de 1945 que somente pararia no ​Führerbunker-3 e​m Berlim -, enquanto que o Dia D agravou ainda mais a situação alemã, mas demorou a render frutos decisivos.

A escolha de dois episódios para exemplificar a problemática das representações se faz devido à sua proximidade temporal e pela escala em que ambas as operações foram desencadeadas, mas cujas consequências imediatas são perceptivelmente diferentes. Ainda assim, dentro da historiografia ocidental, os eventos no Leste são constantemente ignorados e, quando não, acabam por serem lembrados em apenas algumas linhas – o que ilustra bem a discrepância entre o discurso e a realidade.

Construindo estereótipos

O problema não para por aí. Ignorada sistematicamente pelo cinema durante a Guerra Fria, a Frente Leste passou a ser tema de alguns filmes a partir dos anos 2000 (após a queda da União Soviética) e também se tornou parte integrante de diversos jogos de guerra baseados no segundo conflito mundial – notadamente a série ​Call Of Duty​. Porém, salvo raras exceções, tais representações do Exército Vermelho são extremamente enviesadas e cercadas de estereótipos. Vejamos dois exemplos.

Lançado em 2001, o filme “Círculo de Fogo” (​Enemy At The Gates) ​narra o duelo entre dois atiradores de elite numa Stalingrado em ruínas. O personagem soviético, Vassili Zaitsev, de fato existiu, enquanto seu arqui-inimigo, o Major König, é fictício. Mas ao assistir o filme, nos deparamos com uma trama onde há, em determinados momentos, uma tentativa de “humanização” do soldado nazista – ao passo que o verdadeiro vilão do filme se torna, até certo ponto, o próprio regime soviético simbolizado no personagem do comissário político Danilov (Joseph Fiennes), responsável pela propaganda de guerra. De maneira mais clara, em diversos momentos, tal obra mostra o descaso dos comandantes do Exército Vermelho com seus homens, enviando-os para a batalha muitas vezes desarmados. Essa obra inspirou diretamente nosso segundo exemplo: o jogo Call Of Duty (2003), cujas missões finais em Stalingrado remetem diretamente ao filme, chegando a reproduzir detalhe a detalhe algumas de suas cenas. Até que ponto essas representações se aproximam da realidade?

De fato, as tropas soviéticas enfrentaram uma escassez de armamentos na fase inicial da guerra, nas caóticas semanas que se seguiram à invasão nazista em junho de 1941. As perdas astronômicas, tanto em soldados quanto em material em um curto período de tempo associado ao avanço da Wehrmacht sobre as regiões industriais, levaram a uma complexa operação de desmonte e de realocação de fábricas inteiras para além dos Montes Urais, longe do alcance alemão, o que ocasionou num colapso logístico. Porém, a Batalha de Stalingrado iniciou-se na segunda metade de 1942, quando a indústria de guerra soviética já fornecia equipamentos em quantidade suficiente para as tropas e vinha introduzindo, em maior escala, armas iguais ou superiores às alemãs (como o tanque T-34 e os caças Yakolev).

Para além da representação: o fator soviético, decisivo ou superestimado?

Certamente a União Soviética não foi a responsável pela vitória sobre o Terceiro Reich sozinha. Porém, sua contribuição para o colapso do regime nazista é substancialmente mais decisiva para o resultado da Segunda Guerra Mundial na Europa do que a das demais nações aliadas. E por quê?

Simplesmente, porque a Frente Leste foi, e de longe, o maior teatro de operações de toda a guerra. A escala dos recursos empregados por ambos os lados, a violência generalizada e o caráter genocida daquela campanha vão muito além dos limites da compreensão humana. A Operação Barbarossa em si, que deu início ao confronto mais sangrento de todos os tempos, permanece como a maior ação militar da história. Mais de 3 milhões de soldados do Eixo, apoiados por 3.600 tanques, 600 mil veículos motorizados, para não citar o número equivalente de animais designados para o transporte, cruzaram as fronteiras soviéticas na madrugada de 22 de junho de 1941, numa decisão que até hoje gera controvérsias.

Teria sido o erro fatal de Adolf Hitler abrir uma nova frente de combate sem ter dobrado a Grã Bretanha no oeste, considerando os recursos limitados da Alemanha?

Primeiro, devemos ter em mente de maneira muito clara que o embate entre União Soviética e o Terceiro Reich possui algumas características bem específicas. Diferentemente da invasão da França em 1940, por exemplo, onde o objetivo central era a vitória militar, o ataque à União Soviética possuía motivações ideológicas. Desde os princípios do movimento nazista, na década de 1920, um dos pilares que sustentava sua doutrina era a luta contra o bolchevismo. Dessa maneira, esse conflito ia muito além da confrontação militar: era uma guerra de aniquilação entre duas ideologias completamente antagônicas, na qual não havia limites morais ou éticos, e cujo objetivo era a completa erradicação dos ideais que tais nações representavam. Segundo, as motivações para o ataque também se baseavam em questões estratégicas: Hitler acreditava que a Grã-Bretanha permaneceria na guerra mesmo em condições desfavoráveis, pois apostava em obter apoio externo. Os Estados Unidos, apesar de fornecerem apoio material e terem rompido com o Eixo, não tinham apoio popular para intervir. Restava, então, a URSS: a última potência militar na Europa. Uniam-se, dessa forma, as considerações militares junto a quase obsessão nazista em eliminar o regime bolchevique. A luta em duas frentes era ao mesmo tempo consequência do impasse no Ocidente e uma tentativa de quebrar esse próprio impasse.

Ou seja, foi a Frente Leste que mobilizou mais recursos, sendo palco das maiores e mais sangrentas batalhas, e onde ocorreu a maioria esmagadora de baixas de toda a guerra – tanto entre militares quanto em civis. Comparar essa frente com as demais, mesmo que somadas, é simplesmente desproporcional: dos estimados 70 a 85 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial, 30 milhões foram vitimados no Leste-4 , e aproximadamente 75-80% de ​todas as baixas militares alemãs em toda a guerra ocorreram contra a União Soviética.​

Diante desse cenário, de acordo com Norman Davies, é impossível afirmar que a atuação dos Aliados ocidentais e da União Soviética foi “50 a 50”. Certamente, a atuação coordenada da “Grande Coalizão” foi fundamental no processo em si, mas não é possível tratar suas contribuições de maneira igualitária. É exatamente devido a essa disparidade que surgirão, durante a Guerra Fria, os discursos e representações visando diminuir o peso do Exército Vermelho na vitória de 1945, os quais irão alimentar os estereótipos que resistem até hoje.

Nesse sentido, muito se falará do imenso apoio material que a União Soviética recebeu do Ocidente, alegando que foram esses recursos que permitiram o Exército Vermelho manter-se na luta. Mais uma vez, a contradição dos discursos será marcante: a historiografia soviética tenderá a ignorar ou reduzir esse apoio enquanto o Ocidente irá superestimá-lo. Em ambos os casos, é uma visão equivocada. É inegável que a ajuda material ocidental foi, no mínimo, muito importante para manter o as forças soviéticas abastecidas na fase final da guerra e, consequentemente, ajudou a manter seu ímpeto ofensivo entre 1944-45. Milhares de caminhões, viaturas e locomotivas provenientes dos EUA foram fundamentais para a logística de transporte do Exército Vermelho. Entretanto, o que é convenientemente ignorado é o fato de que tal apoio material apenas começou a chegar em quantidades para fazer alguma diferença prática a partir de 1943, quando a União Soviética já havia saído vitoriosa de combates decisivos em Moscou, em Stalingrado e em Kursk, virando a sorte da guerra permanentemente a seu favor. No seu momento mais crítico, ou seja, nos meses seguintes à invasão em 1941, onde as perdas do Exército Vermelho foram colossais, não havia material ocidental nos campos de batalha no Leste. Norman Davies é enfático ao afirmar que o Lend-Lease-5 , ao contrário do caso britânico, “não fez a diferença entre a vitória e a derrota” para o Exército Vermelho. Marc Ferro complementa:

“Com a Guerra Fria, os anglo-saxônicos e os franceses tendiam a atribuir as vitórias do exército soviético à ajuda logística norte-americana – o suprimento de material bélico pelo porto de Murmansk e por terra pelo Irã -, ​enquanto, na verdade, esse fornecimento de suprimentos só se realizou bem mais tarde​” (P.89, 1995)

Ou seja, A União Soviética resistiu entre 1941-42 e recuperou-se do choque inicial por contra própria. Vale lembrar também que as batalhas de Stalingrado e Kursk causaram impactos profundos na Wehrmacht, a qual jamais se recuperou de tais derrotas. Isso não torna o esforço dos demais Aliados menos digno de ser lembrado, nem tampouco altera o fato das numerosas atrocidades e crimes de guerra cometidos pelo Exército Vermelho durante a guerra; porém diminuir o peso da sua importância na queda do regime de Adolf Hitler é um grave equívoco que compromete completamente a compreensão do que foi a Segunda Guerra Mundial. Acima de qualquer outro confronto, ela foi uma luta ideológica – assim como os combates pela sua memória, que permanecem até hoje.


Notas:

1- “Força de Defesa”, designa o conjunto das forças armadas alemãs: a Luftwaffe (Força Aérea), o Heer (Exército) e a Kriegsmarine (Marinha)

2- “Guerra-Relâmpago”. Conjunto de táticas operacionais empregadas pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, com grande foco em rápidas ações coordenadas entre divisões blindadas (Panzers), apoio aéreo aproximado, visando nocautear o inimigo em um curto espaço de tempo. Estrategicamente, refere-se a forçar a rendição do país inimigo em poucas semanas.

3- Complexo fortificado construído no subsolo de Berlim, onde Hitler e sua corte passaram seus últimos dias.

4- Segundo ​Krivosheev
5- Denominação do programa de empréstimos e arrendamentos promovido pelos EUA que forneceu os mais diversos recursos de guerra para os demais Aliados, notadamente a Grã-Bretanha e União Soviética.


Referências:
DAVIES
​, Norman. ​“Europa na Guerra – 1939-1945 Uma Vitória Nada Simples”​. São

Paulo: Record, 2009.
FERRO​, Marc. ​“A História da Segunda Guerra Mundial”​. São Paulo: Ática, 1995

GILBERT​, Martin. ​“ASegunda Guerra Mundial: Os 2.174 dias que mudaram o Mundo”. São Paulo: Casa da Palavra, 2014

KERSHAW​, Ian. ​“Hitler”​. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
_________, ​“O Fim do Terceiro Reich”, ​São Paulo: Companhia das Letras, 2015

KRIVOSHEEV​, G.F. ​“Soviet Casualties and Combat Losses inthe Twentieth Century”​. Greenhill Books, 1997.


Lucas Modaneze é graduado em História pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e tem como área de interesse a História Contemporânea, com ênfase nos estudos sobre as Guerras Mundiais. Atua no Laboratório de Estudos e Pesquisas em História (LEPH) da mesma instituição e é um dos organizadores do site “Taverna do Bloch”.


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