Tudo é Poesia

Esse texto faz parte do livro virtual “33 insights pra vida”, da jornalista Flávia Cadinelli.

Meu pai sempre foi muito brincalhão e espirituoso. Quando era mais nova, iniciamos uma brincadeira (entre várias internas que temos) de fazer poesia com coisa boba. E volta e meia ele me surpreendia com um bilhete:

A pomba voou.
O sino tocou.
A rua está vazia.
O galo cantou.
Tudo é poesia.

“Ai, meu Deus!”. E ríamos disso. Ao final, a assinatura “tudo é poesia” marcava nossa série. Ele é um contador de histórias nato: minha ansiedade era enorme para estarmos juntos no final do dia para o próximo capítulo. Mexidinho no prato, sentávamos um de frente pro outro na varanda.

E ele começava. Desconfio que ele adora o enredo das cidades pequenas, geralmente as histórias começavam por lá. Famílias, casamentos, fazendas. É o que me recordo. No ápice, claro, ele encerrava a noite – para que eu ensaiasse minha imaginação. 

Imaginação. Ô bichinho. A filha já é uma canceriana fácil de viajar pela mente. E ele estimulou isso em muitas ocasiões, desde os formatos das nuvens até quando a missão era continuar a história dele. Fiz o meu melhor. Já a minha mãe, só olhava, intrigada e emocionada ao mesmo tempo. No dia que ela precisou substituí-lo, contou uma dos soldadinhos de chumbo que amarraram a menina na cama dela. Não deu pra dormir e isso virou mais um caso para rirmos em trio.

Certa vez, já quase adulta, observei a ânsia dos meus primos em torno dele para que contasse uma nova trama. Era assim em quase todas as reuniões de família: “tio, cadê a história?”. E ao longe, eu só ouvia as risadas e o entusiasmo deles. Em uma das aventuras, me aproximei da rodinha, e uma priminha bem esperta sentiu falta de um personagem. “Ah, o rato teve que ir num aniversário!”. Improviso? Temos.

Fora das histórias, esse moço ferroviário, tatuado, gentil ao extremo, louco por Pink Floyd e música, sempre me ensinou a ter “plano B”. E ao longe, no Rio, trabalhando, estava eu criando projetos com a alternativa na manga. E aqui, perto, nos meus empreendimentos, sinto que tenho sucesso (a felicidade, que é o que almejo, minha e das pessoas que envolvo) por ter aprendido a ser flexível. E gentil.

Ao meu pai, devo minha capacidade de criar, minha memória de elefante (como dizem minha mãe e o Gabs), minha abertura para conversar com as pessoas e tentar de tudo para fazê-las sorrir. 

Pra sempre, pai, meus mexidinhos serão em sua homenagem. Com carne moída e ovo, claro. Pra sempre, pai, vou me encantar com seus casos, mesmo tendo ouvido a vez que você foi picado em dois lugares na mão por um escorpião num restaurante na Bahia e ficamos mais de um mês por lá. Eu, aos quatro anos, achei o máximo visitar você no hospital. Aos 21, foi mais duro. Mas superamos essa juntos. E seguimos com nossas histórias pra contar.

Hoje, depois de já aprender tanto na vida – e com tanto ainda a aprender – vejo nossa poesia nos momentos mais simples. Descobri, na real, que tudo é poesia. Você já me estimulava a isso quando me tirava dos livros, quando estudava horas para a seleção do Mestrado, pra vermos o pôr-do-sol. Quando me fazia parar tudo para ver como nossa árvore amarela estava linda ou algum passarinho que fez um novo ninho.

Você foi o meu primeiro mestre de Meditação, e eu mal sabia. Mesmo cantando o “OM” ao contrário ou quando me cumprimenta com “Samasê” (sério, é impagável). Agora, quando admiro a cor das flores ou respiro olhando a lua, sei que minha energia chega no seu coração. Pai, tudo é poesia. Gratidão!


Flávia Cadinelli é educadora em Meditação e Autoconsciência, Comunicação e Empreendedorismo, à frente do Movimento Zen e no time de professores de pós-graduações de diversas instituições.


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