O céu estava azul, apenas algumas nuvens manchando a claridade da tarde. Desde o momento em que acordou, sentia que aquele dia seria difícil. Percebeu, assim que saiu da cama, coração palpitando forte, noite insone, calor esfumando-se no asfalto num verão pavoroso, aperto no peito. A praça repleta de gente. Carrinhos de bebê. Pombos por todos os cantos. Um grupo de idosos ao lado de uma bougainvíllea, que jogava suas sedutoras ramas por sobre uma espatódea frondosa e sombrosa. Crianças corriam de um lado para o outro no parquinho situado no centro da praça. Tudo pulsava. Ele, sentado num pequeno banco, solitário, cabisbaixo, esfregando as mãos suadas na calça jeans, testa escorrendo gotas salgadas de suas entranhas, pensava em como iria encarar Noêmia, dar a notícia.
A demissão soava como uma grande ironia. Sintoma do viver que nos pega à espreita e nos cospe na cara no mesmo instante em que parecemos ótimos com o mundo e com as coisas que nos cercam. No início da tarde, após deixar as crianças em casa e almoçar, voltara para o trabalho e, antes mesmo de passar pela porta de entrada da escola, o recepcionista anunciara que o diretor o havia chamado até sua sala. “O que será que Sr. Miranda quer? Hoje o meu corredor estava tão tranquilo pela manhã.”
Ricardo era regente de corredor das salas do Ensino Médio. Todos o adoravam. Tinha uma sintonia com a molecada. Cumpria com determinação e zelo suas atribuições. Estava sempre atento ao que o professor solicitava. Quando havia um filme ou documentário para passar, lá ia ele com suas rodinhas, TV, aparelho de DVD, extensão em punho até a sala requisitante. Tudo mantido em ordem. O que Sr. Miranda quereria? Homem pachorrento, dizia-se marxista, barbas espessas e grisalhas comprimindo seu rosto apequenado em contraste com sua barriga volumosa. Estrategicamente pensada para observar os meninos no pátio, sua sala ficava no centro da escola, com uma parede de vidro colocada bem atrás de sua mesa, feita com madeira de lei e tampo de vidro temperado, onde ele podia tamborilar seus dedos grossos, nodulares e sentir o prazeroso contato da unha com a superfície lisa. “Entre, Ricardo. Pode entrar. Feche a porta, por favor.” “Dá licença, Sr. Miranda. Vim logo que recebi o recado.” A sala acarpetada exalava um cheiro adocicado de maçã. Um dos vícios do diretor era queimar um incenso de vez em quando. Ele dizia que isso atraía bons fluidos para o ambiente. Respirara fundo, deixando contrair um pouco o seu abdômen flácido e saliente, enchendo levemente as bochechas de ar, para logo em seguida o expelir num sopro e num leve balançar de cabeça, como se afirmasse para o mundo que a culpa não era dele, que não foi ele quem criara esse sistema interligado em que o planeta vivia no momento. “Um cara solta um peido na Rússia e todos sentem o cheiro por aqui. Isso é ridículo.” É assim que ele explicara ao homem a sua frente o porquê de sua demissão. Uma crise mundial abalava os alicerces do capitalismo, e tudo começara na Rússia, nos anos entre 1998 e 1999. O Brasil era um dos países mais atingidos. “Porra, o que um país no Leste Europeu tem a ver com a gente? É isso, Ricardo, hoje toda essa merda, toda essa engrenagem está interligada. Os padres estão querendo cortar custos, fazer uma revolução dentro da escola, um verdadeiro choque de gestão. Não tive como segurar seu emprego. Infelizmente não tem jeito”. Ricardo, aparvalhado, olhos esbugalhados, não acreditando naquilo, olhara para o Sr. Miranda como quem achara viver um pesadelo. Quem sabe ainda não acordara. Quem sabe precisaria de um beliscão para voltar à realidade. Naquela mesma sala, há alguns meses, o diretor o parabenizara pela promoção recebida. Como pode uma coisa dessas? Ele havia contraído dívidas contando com aquilo tudo. Como ficaria o futuro dos seus filhos, que estudavam de graça na escola? “Olha, não se preocupe, consegui que os seus filhos terminassem o ano aqui, de graça”. De que adianta isso? Meu Deus! Oh, meu Deus! Num gesto involuntário, Ricardo procurara o seu inseparável crucifixo pendurado no pescoço sobre a camisa. Apertara-o com força com a mão direita. Não quereria chorar, mostrar a sua fraqueza diante do diretor. Começara a sacudir as pernas de um lado para o outro para distrair a mente. Lá fora, no pátio, alguns adolescentes voltaram da Educação Física brincando com uma bola. Um deles, sem controlar a intensidade de sua força, arremessara-a contra a parede de vidro da sala. O som ecoara dentro do ambiente, assustando os dois. Foi o beliscão da realidade. Miranda levantara-se num sobressalto e apontara o dedo indicador em riste para o moleque através do vidro, que, consternado, pedira desculpas ao diretor. Aquela pequena distração fora o suficiente para fazer Ricardo recobrar os sentidos, reunir forças e não desabar. Seus pensamentos estiveram longe, em sua casa, em Noêmia, em seus filhos, em suas dívidas, em seu precipício.
E ainda sentia os efeitos daquilo tudo sentado ali, solitário, naquela praça cheia de gente. O que faria? Tinha vergonha de voltar para casa e dar a notícia mais difícil e triste de sua vida, segurando na mão sua carta de demissão e a marcação de um exame médico que confirmaria em definitivo sua condição de desempregado. Olhou para o alto, como quem está à procura de algo, de clemência. Não havia nada. Apenas o céu, impassível, lindo, diante de sua cabeça.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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