A construção espetacular e mitológica do personagem Aleijadinho, em busca de uma unidade nacional, deixa suas marcas impressas nas possibilidades contemporâneas de análise de todo o patrimônio plástico do século XVIII mineiro. Utilizaremos como base algumas reflexões propostas por dois nomes não muito bem quistos pela Academia: John Ruskin, tido como ultrapassado por muitos, e Augusto de Lima Jr., que já não era dos mais queridos durante sua vida.
“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”
(Guy Debord).
O “Gênio”
Com esta constatação do pensador francês em mente, não podemos deixa de relacionar seu “espetáculo” com a criação dos modernos “heróis nacionais” – anacronismos de lado. Dois dos aspectos fundantes dos usos modernos da arte são: sua institucionalização, como bases para uma linearidade histórica e cultural da nação, e seu uso mercadológico, de fato com um produto gerador de lucro. Aqui, daremos destaque para primeiro aspecto apresentado, refletindo sobre mitos para a unificação nacional de um Brasil que queria se mostrar moderno e original, sem deixar de passar pelo segundo.
Ao pensar a gênese da “arte brasileira”, por subsequência, de uma “brasilidade”, o projeto modernista (aquele da icônica semana de 1922) encontra-se com a figura romântica e idealizada do Aleijadinho. Este herói mítico, retratado por meio de diversos anacronismos e inconsistências, serve como símbolo de uma independência estética da colônia, uma primeira manifestação genuinamente brasileira pós invasão europeia. Esta visão que, ao passo que pretende retratar uma unidade cultural por meio do artista mestiço, também busca desvelar um protagonismo do “gênio”, no século XVIII não era possível. A gana de encontrar símbolos verdadeiramente brasileiros vê no mito do Aleijadinho, retratado pela primeira vez por Rodrigo Bretas em sua biografia no Século XIX, uma substancial oportunidade de glorificá-lo.
Augusto de Lima Jr, na primeira metade do século XX, já começa a refutar este status, porém não sem encontrar dificuldade e descrença. Para o autor brasileiro, o mito do Aleijadinho insere-se de forma profunda na cultura brasileira, impossibilitando uma leitura mais cientificista do tema. A exaltação do artista como figura mítica lhe confere o posto de intocável e, por consequência, indiscutível. Exemplifico aqui com as duras palavras do autor, “Não acreditar nas patranhas sobre o Aleijadinho chega a ser quase uma vergonha, é prova de estupidez e de má fé.” (Augusto de Lima Jr.).
A máxima romântica do “gênio” é facilmente encontrada em leituras dos textos do autor inglês John Ruskin, pensador da arte e política na primeira metade do século XIX. Ele nos diz que cada nação já tem uma quantidade pré-determinada de gênios e que estes devem ser lapidados, a fim de deles tirar-se o maior proveito. Podemos compreender essa “lapidação” como certa necessidade de cunhar pessoas para assumir tal posto de “gênio”, algo que demonstra certa subserviência ao cânon europeu das artes plásticas, crítica constante ao movimento modernista. Esta “condição” de genialidade não era presente nos “setecentos”, muito pelo contrário: a relação com os artífices se dava de forma muito impessoal. A falta de documentação biográfica dos mestres e artífices produzida na época atesta este fato.
Barroquismos
O homem barroco surge na ibero-américa como uma junção cultural, entre os valores europeus e os locais, criando algo “nosso”; utilizando-se do métodos metropolitanos, os colonizados se rebelam. O exotismo aqui é utilizado para se distanciar ainda mais do “outro” europeu, definindo e perpetuando a cultura local aqui de acordo com Guiomar de Grammont. O que é tido como “original” pressupõe o uso de técnicas e temas europeus, e a mestiçagem, uma suposta pureza anterior, de cunho romântico.
Toda representação mítica precisa ser distorcida a fim de ressaltar virtudes; assim, a criação do herói em um tempo onde a individualidade e o fator criativo independente era inexistente é apresentada como uma resistência ao colonizador, o que não condiz com a documentação existente. A finalidade política se torna clara na gênese do herói barroco: ainda de acordo com Guiomar de Grammont, esta sobrepõe-se a estética como fundamento da construção da identidade nacional no século XX.
Para Augusto de Lima, a origem mestiça é muito importante para glorificação de Aleijadinho, que, aliada aos valores da inconfidência mineira, cria um terreno fértil para a proclamação deste herói das artes. Não nos cabe reduzir o valor das produções artísticas, mas questionar sua fetichização cega, que apenas cobre o mérito do movimento. A idealização do mito retira de sua obra o fator humano, colocando um movimento artístico grandioso sob a sombra de uma lenda. “O que tem prejudicado os estudos sobre nossos artistas da fase colonial tem sido essa organizada apologia a um determinado, convertido em ídolo” como disse Augusto de Lima Jr. em seu livro de 1942.
Não queremos reduzir a importância de um herói pardo em meio a um Brasil colonial que se retratava majoritariamente branco e eugênico, mas sim questionar o uso do mestiço por outrem – mais uma vez não dando voz aos vivos e ativos habitantes da terra em brasa. Hoje, pautamos nossas discussões em “lugares de fala” e “alteridades”, mas às vezes nos esquecemos de questionar nossos pares.
Mercado
Outro fator que em segundo plano aliou-se a esta construção é provavelmente o mercado de arte, que, por meio da criação mítica de Aleijadinho, encontra caminho fértil para o lucro. Por meio da não personificação do século XVIII, fatores subjetivos servem à ratificação de autoria das obras. Com um mercado de certa forma desregulado, as atribuições muitas vezes atendem a fatores mercadológicos, acima dos científicos. Ainda nos dias de hoje, encontramos casos de mau uso deste fato, como pode ser constatado em reportagem da revista Época de 2011, onde o escultor Marcos Bernardes encontrou uma de suas obras alterada e atribuída a Aleijadinho.
Fato é: ainda hoje, tais questionamentos sobre a vida e obra de Antônio Francisco Lisboa são vistos com maus olhos, polêmicos. Não são necessários mais de 15 minutos de ócio contemplativo em uma igreja de Ouro Preto para se ouvir histórias de origem duvidosa propagadas por guias da cidade. Estes hábitos apenas podem diminuir fatos de grande interesse para sociedade, tendo em vista que uma análise rigorosa da arte mineira setecentista não tiraria os méritos de seus personagens.
Resistência
Acredito que a figura do “gênio mestiço”, no caso de Aleijadinho, não cumpre seu papel de elevar a autoestima do povo brasileiro em seu caráter de potência criadora. No fim das contas, transporta toda sua obra para um patamar inalcançável, um caso isolado… Imagino que a compreensão menos idílica do caso, enxergando um punhado de artistas da terra, se representado nas entrelinhas do rigor estético da arte do XVIII, nos seus trejeitos e traços físicos, seja muito mais potente para tal objetivo. No caso da própria Ouro Preto, um rápido passeio visual pelos signos Adinkras mostra uma linha de frente estética de resistência, mas isso é conversa pra outra hora.
Os mitos de origem, por muitas vezes, alteram a historiografia e não têm como pressuposto a verdade. Não digo aqui o contrário, que tudo seja mentira, nem discuto o que é verdade ou mentira; mas ressalto as possibilidades de omissões e enaltecimentos exacerbados. Vivemos em uma maldita mitomania e a criticamos todos os dias, mas não podemos esquecer dos mitos que, supostamente, são nossos amigos, mas deixam encobertas importantes camadas simbólicas, sociais e plásticas.
Leia Comigo:
DEBORD, Guy: Sociedade do Espetáculo; eBooks.com, 2003
GRAMMONT, Guiomar: Aleijadinho e o Aeroplano; Civilização Brasileira, 2008
LIMA JR. , Augusto: O Aleijadinho e a Arte Colonial; Edição do Autor, 1942
RUSKIN, John: Selvatiqueza (Excerto de A Natureza do Gótico); EESC – USP, 2006 RUSKIN, John: A Economia Política da Arte; Record, 2006
José Hansen é editor de conteúdo do site Baixo Centro, graduado em Museologia pela UFOP e recém-ingresso no Mestrado Profissional em Gestão do Patrimônio pelo IPHAN.
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